“Estamos detectando uma certa disfuncionalidade no sistema político brasileiro há algum tempo”
Para o ministro decano da Suprema Corte, a adoção do regime semipresidencialista seria uma forma de pacificar o país. Entretanto, ele não vê a implementação deste novo modelo a curto prazo. Segundo sua análise, isso seria para a próxima década.
Por Humberto Azevedo
“Estamos detectando uma certa disfuncionalidade no sistema político brasileiro há algum tempo”. Com esta análise, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, avalia que o país precisa começar a discutir a adoção do regime semipresidencialista, quando o Poder Executivo divide suas funções com o Poder Legislativo.
O ministro decano da Suprema Corte acredita que ao adotar o semipresidencialismo, a polarização que hoje segue dividindo o país, seria uma forma de pacificar o Brasil e os brasileiros. Apesar de simpático à mudança de regime, Gilmar Mendes não vê a implementação deste novo modelo a curto prazo. Segundo sua análise, isso seria mais a média e a longo prazo.
“É um imenso desafio fazer com que esse gênio volte para a garrafa. Então, precisamos discutir”
“A vantagem do semipresidencialismo (…) é que, se se formar uma nova coalizão e se optar por substituição do governo, (…) isso se faz com cumprimentos. [Precisamos] discutir um novo regime de governo e talvez fosse possível encontrar uma solução em que se dividisse a governança entre um presidente da República eleito diretamente e o Congresso Nacional que elegeria o governo. Esse seria um ponto importante”, comenta o ministro em entrevista exclusiva ao site RDM On Line.
“Esse sistema sempre esteve por aí. E me parece que agora nós temos que discutir isso”
“Um segundo ponto, talvez em prol dessa ideia, é o trauma que causa o impeachment. E nós já tivemos nesses quase 40 anos de Constituição, dois impeachments presidenciais. (…) [Em que] o governo já não tem maioria suficiente no Congresso e as pessoas dizem: ‘não há mais jeito, vamos caminhar para o impeachment’. E isso resulta em traumas, porque não se respeitam os processos eleitorais”, complementa o ministro Gilmar.
“[Mas] não imagino que seja possível se fazer de imediato, e me parece que isso tem que passar por uma grande concertação, inclusive considerando que há candidatos que estão nos postos suscetíveis de serem reeleitos e tal”, continua.
PARLAMENTARISMO ORÇAMENTÁRIO
As declarações de Gilmar Mendes aconteceram após ser questionado pela reportagem, de que a adoção do semipresidencialismo ajudaria a pôr em pratos limpos o atual momento vivido no país desde 2015, quando Congresso Nacional começou avançar sobre o controle do Orçamento Geral da União (OGU) com o surgimento das emendas impositivas. De lá para cá, o que começou com o controle do destino de aproximadamente R$ 3 bilhões passou a envolver cifras superiores a R$ 50 bilhões.
“Hoje, há uma série de problemas nessa concertação entre o Executivo e o Legislativo”
“Não se trata de demonizar as emendas parlamentares e nem censurar a participação dos parlamentares no orçamento, porque são eles mesmos que aprovam. (…) Mas esse novo desenho, sem conexão com políticas públicas razoavelmente bem definidas, é preocupante”, completa o ministro Gilmar Mendes.
Abaixo, segue a íntegra da entrevista exclusiva concedida pelo ministro decano do STF à reportagem do site RDM On Line.
Grupo RDM: Como o sr. tem visto esse debate e a recém apresentação desta proposta por parlamentares como Lafayette Andrada (Republicanos-MG) e Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR) de instituir no país o modelo do semipresidencialismo no Brasil?
Gilmar Mendes: Eu acho que nós estamos detectando uma certa disfuncionalidade no sistema político brasileiro há algum tempo. Na Constituição de 1988, nós até discutimos antes a introdução do parlamentarismo, na fase de feitura, e depois veio aquele plebiscito, cinco anos depois.
“Nós não temos um [modelo de] semi-presidencialismo, nós temos vários”
Grupo RDM: Em 1993.
Gilmar Mendes: Isso, em 93, confirmou-se que o regime era presidencial, presidencialista. Mas nós temos visto que a construção de maiorias parlamentares, às vezes um tanto quanto instáveis, precárias, que se dá dentro daquilo que o Sérgio Abranches chamou de ‘presidencialismo de coalizão’. Em que o governo estabelecido celebra um arco de alianças, para além do seu partido, às vezes para além da sua base, aí envolve negociações, adesões, e negocia lugares no governo, em órgãos públicos em geral, e também operava com o modelo das emendas facultativas. Normalmente era uma forma de fidelizar essa bancada.
Grupo RDM: Anterior até a questão das emendas obrigatórias.

Gilmar Mendes: Isso. No governo Dilma, já num sinal de enfraquecimento desse modelo, o Congresso, sob a liderança de Eduardo Cunha na Câmara, aprova as emendas impositivas. Portanto, uma parte das emendas deixa de ser facultativa e passa a ser impositiva. Até aí era uma quantidade relativa de recursos, só que isso foi crescendo ao longo do tempo, chegando no último ano a 50 bilhões, um volume, eu acho que equivalente a quase 20% das despesas discricionárias. Então, isso já denota que está se fazendo um tipo de reforma no modo de governar, de uma maneira um tanto quanto atabalhoada, com o Executivo perdendo suas funções típicas de implementação das políticas públicas, eventualmente aprovadas pelo Congresso, e o Congresso passando a definir às vezes obras de pequena monta ou de maior monta, a partir desses repasses que são automatizados. E aí vieram as emendas secretas, emendas PiX e tal. Bom, nesse contexto, talvez valesse a pena discutir um novo regime de governo e talvez fosse possível encontrar uma solução em que se dividisse a governança entre um presidente da República eleito diretamente e o Congresso Nacional que elegeria o governo. Esse seria um ponto importante. Um segundo ponto, talvez em prol dessa ideia, é o trauma que causa o impeachment. E nós já tivemos nesses quase 40 anos de Constituição, dois impeachments presidenciais. O do presidente Collor e o da presidente Dilma. E muitos deles estão associados, não só aos fatos que deram ensejo, mas também a situações de perda de governabilidade. O governo já não tem maioria suficiente no Congresso e as pessoas dizem: ‘não há mais jeito, vamos caminhar para o impeachment’. E isso resulta em traumas, porque não se respeitam os processos eleitorais. A vantagem do semipresidencialismo aqui é que, se se formar uma nova coalizão e se optar por substituição do governo, portanto, eleger um novo primeiro-ministro, isso se faz com cumprimentos.
“Isso é um debate que certamente virá. Eu entendo que, em princípio, não é necessário fazer-se um novo referendo”
Grupo RDM: Derruba-se o governo e se coloca outro.
Gilmar Mendes: Sim, aí seria o modelo.
Grupo RDM: O modelo parlamentarista, o semipresidencialismo, é muito difundido na Europa. Por exemplo, o governo que acabou de se eleger em Portugal, já caiu, vai ter novas eleições para se construir um novo governo, uma nova maioria. Aí que é a pergunta, qual modelo seria adotado aqui no Brasil? Porque em Portugal, por exemplo, há o risco de sempre ter, quando cai o governo, tem que fazer novas eleições para se eleger os novos parlamentares, ou referendar aqueles que lá estão? Isso é viável?

Gilmar Mendes: Isso também é uma discussão, inclusive, se eventualmente em caso de dissolução, se você dissolve só a Câmara ou se Câmara e o Senado, considerando a assimetria dos votos, uma vez que o Senado, nós sabemos, elegemos por oito anos, mandato de oito anos. Então, essa é uma questão que nós teremos que discutir e, talvez, dificultar o processo de dissolução. Isso já tem meios jurídicos políticos de se fazer, via mecanismos como o chamado voto de desconfiança construtivo. Você só derruba um governo quando já tem uma maioria formada para eleger outro. Então, muitas vezes, você não precisa fazer uma nova eleição. Na Alemanha mesmo, naquela fase que depois vai resultar na fusão, na reunificação, o Partido Liberal, que era o tal fiel da balança, muitas vezes acontece isso, fazia aliança com os socialistas, passou a fazer com os cristãos democratas e elegeu, portanto, um novo governo sem dissolução da Assembleia. E aí o presidente da República passa a ter a chave do sistema, dissolve ou não dissolve, tenta propor um novo governo. A gente tem várias experiências no mundo e, certamente, isso tem que ser calibrado de acordo com a nossa própria cultura, para evitar a acefalia. Isso já tem bons instrumentos e remédios.
Grupo RDM: Mas a questão do parlamentarismo orçamentário, que muita gente já está chamando assim, isso não seria uma forma para que os parlamentares cuidassem do dinheiro, sem ter que cuidar dos ônus que é ser governo?
Gilmar Mendes: Não é essa a pergunta que acho que se deve fazer. O que me parece é que a maioria governará e terá que fixar políticas públicas e ser responsável por isso. Não pela gastança, mas pela responsabilidade fiscal como um todo. E não só de aplicar recursos. Ou de gastar, ou de indicar, mas de saber como eles são obtidos. A função de governar como um todo será da maioria congressual, que elegerá um governo e que terá a responsabilidade. Porque esse modelo atual, dessas emendas, ela gera os benefícios da disposição de recursos, sem a devida responsabilidade.
Grupo RDM: Sem o ônus.
Gilmar Mendes: Mesmo as antigas emendas de bancada, que eram normalmente pensadas como emendas estruturantes, elas acabaram sendo fragmentadas. Emendas que, por exemplo, pudessem ajudar, digamos, na comunicação, estradas entre Mato Grosso e Goiás, interligações a estradas. Às vezes falta de trechos para ligar duas vias importantes de quando em vez isso aparece nas indicações de logística. Certamente os governos de Mato Grosso e Goiás, eventualmente Tocantins, se juntariam para isso. Muitas vezes os governadores vinham trabalhar nesse sentido. Isso, de alguma forma ajudava a viabilizar. [E isso] Desapareceu. Então não se trata de demonizar as emendas parlamentares e nem censurar a participação dos parlamentares no orçamento, porque são eles mesmos que aprovam. Mas esse novo desenho, sem conexão com políticas públicas razoavelmente bem definidas, é preocupante.
“A gente tem várias experiências no mundo e, certamente, isso tem que ser calibrado de acordo com a nossa própria cultura, para evitar a acefalia”
Grupo RDM: Mas, por exemplo, hoje não seria cômodo para o “centrão”, que indica o recurso e você chantageia o governo.
Gilmar Mendes: Não sei se só ao ‘centrão’. Eu acho que, a rigor, isso foi uma construção, talvez não planejada decisivamente, que o parlamento foi desenvolvendo, talvez a partir daquelas irritações com a liberação das emendas parlamentares, e claro, isso se dá num momento de debilidade do Executivo. Tanto é que é naquele momento, Dilma, acho que em 2015, a primeira emenda, e aí foram fazendo…
Grupo RDM: E de lá para cá já temos quatro governos.
Gilmar Mendes: Isso. Uns com maior facilidade que outros de lidar com o Congresso, o próprio presidente Temer, que vem numa circunstância muito especial de impeachment presidencial da presidente Dilma, ele vem com a ideia de… Ele próprio diz, ‘eu já apliquei o semipresidencialismo’, porque ele disse que tinha um diálogo muito fluido com o Congresso Nacional. Tanto é que duas acusações feitas contra ele não conseguiram maioria de autorização no Congresso Nacional. Ele conseguiu bloquear porque tinha suporte parlamentar, a despeito da baixa popularidade do seu governo.
Grupo RDM: E como evitar aqui, por exemplo, que o modelo italiano se replique no Brasil? Em 79 anos, 69 governos.

Gilmar Mendes: Eu acho que é um pouco pegar essa experiência, talvez do modelo alemão, primeiro de não ter, não conviver com a ideia da acefalia. Eventualmente, só aceitar a derrubada de um governo já com a indicação de outro. Claro que nós temos que fazer uma série de reformas nesse contexto, redução do número de partidos e tudo isso, para a formação também de bancadas mais estáveis. Mas, de alguma forma, isso já vem ocorrendo. A cláusula de desempenho. A fusão de partidos. De alguma forma, o que vem dando também maior identidade ideológica às forças partidárias. Eu acho que há reformas que são pressupostas para nós caminharmos nesse sentido. E o Congresso já se voluntaria, essa iniciativa do próprio presidente Hugo Motta apareceu importante nesse sentido. O fundamental é que nós não comprometamos as bases de um modelo de governança com responsabilidade fiscal. O fato de o Parlamento, agora, por maioria, começar a formar o governo, se é que isso virá a ocorrer, isso envolve grande responsabilidade para exatamente não replicarmos modelos instáveis. Na Itália, o que se fala é que, a despeito da instabilidade governamental, o presidente da República acaba exercendo um papel bastante importante e faz esse papel, vamos chamar assim, de poder moderador. E também uma burocracia muito adequada, sofisticada. Chegam até a fazer um pouco de brincadeira em torno disso, dizendo que, às vezes, sem governo está melhor do que com governo. Então, confia-se muito nos quadros elevados da própria burocracia. A pergunta é sobre isso.
“Essa é a vantagem de estarmos discutindo de maneira bastante aberta e sem dogmatismo”
Grupo RDM: O Brasil, em 1961, de João Goulart, em que o país viveu aquela crise institucional, o Brasil instituiu o parlamentarismo e o então presidente conseguiu uma grande campanha popular de fazer um plebiscito e o plebiscito devolveu os poderes para ele, em 1963. Depois houve o golpe de Estado. Aí, 30 anos depois, também houve um plebiscito para a mudança de regime, que manteve o presidencialismo. Agora, aprovando a PEC do deputado Luiz Carlos Hauly e do deputado Lafayette Andrada haveria necessidade de operacionalizar essa mudança, sem aprovação de um referendo, um plebiscito, ou essa consulta a população precisa?

Gilmar Mendes: Isso é um debate que certamente virá. Eu entendo que, em princípio, não é necessário fazer-se um novo referendo. Há vozes que operam nesse sentido, considerando o resultado do referendo de 93. Mudanças no regime já estão ocorrendo, nós estamos vendo, sem que se cogite de referendo. É até curioso, nós fizemos uma pesquisa, para o próprio IDP [Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa], a propósito [dos 35 anos] da Constituinte. E uma das informações é que o [ex-senador e ex-presidente] Fernando Henrique [Cardoso], o [José] Serra [ex-deputado e ex-ministro da Saúde], trouxeram essas informações de que o parlamentarismo esteve para ser implementado naquele momento. Mas a insistência de alguns líderes na redução do tamanho do mandato do [então] presidente [José] Sarney [PMDB], levou a obstáculos. Por exemplo, citam o caso do [ex-deputado e ex-governador] Mário Covas. Chegou um momento em que o presidente Sarney teria aceitado ter o mandato de cinco anos, portanto reduzia-se um ano do seu mandato, e ele aceitava o parlamentarismo desde que, para aquele caso, ele indicasse o primeiro-ministro. Portanto, uma figura na transição para terminar. Mas isso não foi aceito pelas lideranças da época, que talvez apostassem numa eleição presidencial, em função da participação no próprio processo constituinte. E, portanto, esse sistema sempre esteve por aí. E me parece que agora nós temos que discutir isso. Ou, ainda, discutir, talvez, o restabelecimento de alguma ordem no que diz respeito ao sistema orçamentário. Agora, é um imenso desafio fazer com que esse gênio volte para a garrafa. Então, precisamos discutir. E, hoje, há uma série de problemas nessa concertação entre o Executivo e o Legislativo. Vide, por exemplo, a aprovação de nomes para as agências [reguladoras], em que, a despeito do texto legal não prever, o Senado, sobretudo, tem entendido que ele tem uma cota nas indicações. Portanto, veja, é mais um elemento dessa participação, vamos chamar assim, ou expectativa de participação na governança.
Grupo RDM: Então, a adoção do parlamentarismo ajudaria também a pacificar o país?
Gilmar Mendes: Eu tenho a impressão que sim. Seria, talvez, um governo mais plural. Há modelos interessantes, por exemplo, na Alemanha, se faz um chamado contrato de coalizão, com muito detalhe, em que os partícipes se unem para dizer, esse é o nosso programa de governo, cada qual terá essa tarefa. Então, dá-se bastante transparência a isso. E acho que isso, talvez, também leve a uma melhor integração da coalizão rumo aos seus objetivos.
Grupo RDM: E até com a convivência com os demais poderes.
Gilmar Mendes: Sem dúvida.
Grupo RDM: A adoção do parlamentarismo seria, nesse momento de mudanças profundas da conjuntura mundial, na mudança de geopolítica, também seria essa mudança de regime, ou semi-regime, no caso parlamentar, que a proposta é muito parecida com lá com o que se tramitou à época do Sarney, em que seria o presidente da República que escolheria, dentre os parlamentares, o primeiro-ministro. Ajudaria o país, o Brasil, a se movimentar nessa nova geopolítica?
Gilmar Mendes: Não sei se mudaria fundamentalmente isso. Certamente, seria escolhido um ministro das Relações Exteriores. Aqui pode-se ter até uma discussão se determinadas políticas públicas ficam com o presidente ou com o primeiro-ministro. Por exemplo, o comando das Forças Armadas ou mesmo Relações Exteriores. Pode ter variações. Nós não temos um semi-presidencialismo, nós temos vários.
“Esse modelo atual, dessas emendas, ela gera os benefícios da disposição de recursos, sem a devida responsabilidade”
Grupo RDM: Ou como na França também que separa políticas de Estado e políticas de governo.
Gilmar Mendes: Então, precisamos olhar isso. Essa é a vantagem de estarmos discutindo de maneira bastante aberta e sem dogmatismo. Temos, de alguma forma, já experiência nesse sentido. Boas e más.
Grupo RDM: E como o Sr. analisa esse momento da geopolítica mundial?

Gilmar Mendes: É um momento muito delicado e todos estão pisando com certa cautela, porque não há nada definido. Qual é o modelo Trump? Não sei. E ninguém sabe. E como isso vai resultar em cada foro, em cada local? Como isso vai refletir na América Latina? Como isso vai refletir na Ásia, na Europa, onde nós temos talvez o principal conflito hoje, um cenário, um palco da Ucrânia, da crise. Como ficam esses atores, Rússia, China, BRICS, em que nós estamos incluídos. Então, agora, é um pouco o que os chineses falam, crise e oportunidade. O Brasil continua sendo um portador de um enorme soft power, um país que normalmente media conflitos. Nós não temos guerra, nós não somos potência nuclear e nem militar, e somos a décima, a nona, a oitava economia do mundo. Então, temos um background bastante grande, somos líderes aqui na América do Sul, e podemos ter um papel importante nesse novo cenário. Há muitas perguntas. Acordo Mercosul-Europa vai se consolidar? Antes se dizia não, agora se diz sim, talvez por conta, inclusive, dessa mudança geopolítica. Isso pode ser extremamente interessante, nos fortalece na área da agricultura, e talvez surjam novos pactos, a própria relação com a China, hoje o nosso maior player na área comercial. Em suma, é um momento, eu acho, de expectativa e também de um olhar cuidadoso, no sentido de abertura de oportunidades. Nós, felizmente, não estamos envolvidos nesses conflitos. Somos chamados, na verdade, na linha de colaboração, mesmo no Oriente Médio, onde também há esse conflito, nós, em princípio, somos parte da solução, e temos uma grande capacidade, somos influentes, por exemplo, na segurança alimentar do mundo. Acho que temos um papel nesse contexto.
Grupo RDM: Para encerrar, como o Sr. avalia que essa mudança de regime, ou de sub-regime, no caso do semipresidencialismo, poderia ser já para agora, já para 2026, já para 2027?
Gilmar Mendes: Não. Não imagino que seja possível se fazer de imediato, e me parece que isso tem que passar por uma grande concertação, inclusive considerando que há candidatos que estão nos postos suscetíveis de serem reeleitos e tal. Todo esse debate é extremamente negativo. Nós temos essa memória, não queria deixar de mencionar, considerando inclusive a sua consideração anterior, ou uma das considerações anteriormente feitas, negativa em relação ao presidencialismo, tendo em vista o episódio João Goulart. E a gente esquece que, no passado, especialmente no segundo Reinado, nós fomos parlamentaristas, de alguma forma. A monarquia constitucional brasileira desenhou-se…
“O fundamental é que nós não comprometamos as bases de um modelo de governança com responsabilidade fiscal”
Grupo RDM: Sobretudo no período da regência.
Gilmar Mendes: Sim, da regência. E de alguma forma governos se alternaram mesmo com o imperador Pedro II nessa linha. Mas o episódio João Goulart foi extremamente negativo e fruto de uma disfuncionalidade em que o presidente era eleito por uma maioria, e o vice eventualmente também era eleito por uma outra maioria, o que gerou aquela crise quando houve a renúncia do Jânio Quadros. E o presidente João Goulart que recebe aquela imposição, só assume se passássemos para o regime parlamentarista, ele, muito provavelmente, ele investiu toda a energia, quer dizer, estando no poder, em derrubar a tal emenda parlamentarista. O que certamente foi o seu maior erro considerando o contexto histórico que havia e todas as ondas de suspeição num momento de ‘Guerra Fria’ muito acentuada. Então, a gente não pode fazer a associação do parlamentarismo, aquela experiência parlamentarista, como uma experiência negativa simplesmente por conta do parlamentarismo, mas por conta do contexto histórico e, talvez, pela própria ação do presidente. Salvo engano o Miguel Reale chegou a escrever sobre isso recomendando que não tentassem suprimir o parlamentarismo, porque ela iria trazer uma crise mais grave como acabou trazendo em 1964.
“Ou, ainda, discutir, talvez, o restabelecimento de alguma ordem no que diz respeito ao sistema orçamentário”
Grupo RDM: E a primeira Constituição brasileira, de 1823, que não chegou a vigir, só durou menos de um dia, ela era parlamentarista, e o Dom Pedro I não aceitou e impôs a Constituição que vigorou na maior parte do período imperial.
Gilmar Mendes: Mas com a Constituição de 1824, o Dom Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte, mas como ela tinha uma certa flexibilidade, se conseguiu fazer reforma importantes e um certo equilíbrio com a designação de partidos liberais e conservadores, que alternavam-se no poder durante aquele período formando governos. Tanto é que há muita discussão, ou alguma discussão, sobre a proclamação da República. Se o [Marechal] Deodoro estava consciente de que estava proclamando a República, ou se, de fato, ele estava querendo derrubar o governo que estava incumbente naquele momento. Ok?