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Racionalidade da lei

ENTREVISTA DA SEMANA | PRESIDENTE DO SUPREMO

Para Fachin, “o artigo 5º da Constituição é o coração do nosso estatuto constitucional”. (Foto: Valter Campanato / Agência Brasil)

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Fachin defende que juiz é “tradutor da Constituição” e não criador de leis, e enaltece transparência do STF

 

Presidente da Suprema Corte avalia que transparência nas sessões é um “medicamento correto” para a democracia e que magistrados devem seguir apenas a racionalidade da lei, sem lastros nas opiniões pessoais.

 

Por Humberto Azevedo

 

Em declaração dada no último 5 de outubro, durante as celebrações dos 37 anos da Constituição federal realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro e presidente da Suprema Corte, Edson Fachin, destacou que o papel do Poder Judiciário e do magistrado é atuar como um “tradutor da ordem jurídica para o caso concreto”, e não como um criador de normas.

 

A fala, dada durante uma coletiva de imprensa, pontuou a defesa da imparcialidade judicial com base estrita no texto constitucional, em contraposição a decisões baseadas em convicções pessoais. Fachin também utilizou uma metáfora médica para defender a transparência radical do STF, classificando-a como um “medicamento correto” para a saúde democrática, mesmo que aplicado em doses que alguns considerem excessivas.

 

O ministro destacou ainda que a fundamentação pública das decisões é um pilar da prestação de contas à sociedade. Ele ressaltou que o modelo brasileiro, com sessões transmitidas ao vivo pela TV Justiça, é um diferencial com relação a outras cortes constitucionais pelo mundo, como a Suprema Corte dos Estados Unidos (EUA), que opera a portas fechadas.

 

Para o presidente do STF, o escrutínio público, com críticas e aplausos, é um elemento saudável e inerente a uma sociedade livre. A exposição do tribunal, segundo Fachin, é uma consequência direta de seu papel e um dever democrático. Ele argumentou que a publicidade permite que a sociedade acompanhe os fundamentos racionais e objetivos por trás das decisões que impactam a vida da população.

O ministro, que ingressou na corte constitucional em 2015, resume que “a Constituição não apenas organiza o Estado, mas também a vida em sociedade”. (Foto: José Cruz / Agência Brasil)

“A consciência de um magistrado, especialmente de um magistrado constitucional, é a racionalidade sistemática e objetiva que está na Constituição. Não se trata de uma consciência individual. O magistrado é um tradutor da ordem jurídica para o caso concreto. Ele não é um criador de normas”, afirmou Fachin, deixando clara sua visão sobre os limites da atuação judicial.

 

“Pode-se dizer que seria um exagero a transmissão ao vivo das sessões. A percepção que tenho, todavia, é que se a dose do medicamento é incorreta, o medicamento, todavia, é correto. Porque transparência, publicidade, são valores inerentes à democracia. Em matéria de transparência, eu prefiro pecar pelo excesso do que abreviar e, muitas vezes, impedir a divulgação e a publicidade”, completou o presidente do STF ao defender de maneira enfática o mesmo o modelo brasileiro, mesmo alvo de críticas e questionamentos.

 

ÍNTEGRA

 

Abaixo, segue a entrevista coletiva concedida pelo ministro Edson Fachin durante as comemorações dos 37 anos da “Constituição cidadã” assim como definiu o então presidente da Assembleia Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP), falecido em 1992 num trágico acidente aéreo em que seu corpo nunca foi encontrado.

 

Imprensa: Ministro, além de trazer pacificação social para o Brasil, tão necessário naquele momento histórico da sua elaboração, a Constituição de 1988 trouxe uma série de inovações em relação aos textos constitucionais anteriores. Quais as principais inovações que o senhor destacaria?

Fachin considera também que “o magistrado é um tradutor da ordem jurídica” e “não um criador de normas”. (Foto: Valter Campanato / Agência Brasil)

Fachin: Realmente, em 1988, um novo contrato de natureza fundacional acabou organizando não só o Estado, como também a sociedade, e de modo especial, o direito das pessoas nas relações com o Estado e dentro da própria sociedade. Esta dimensão decorre precisamente de um anseio que precedeu e, de certa maneira, gerou a Constituição, que era o anseio da redemocratização, o anseio da reinstalação do Estado de direito democrático e, portanto, das garantias funcionais e de tudo aquilo que caracteriza uma vida em democracia. Esse contrato fundacional, na verdade, ele emergiu de um conjunto de aspirações que estavam antes de 88, que começaram pelo movimento das diretas, que passaram pelas eleições diretas para governador, que também recolheram muitas manifestações que se fizeram no país e se projetaram para o texto de 88. Portanto, esse é um texto que catalisa essas aspirações, que verte esse conjunto de aspirações numa expressão aberta e plural e, evidentemente, se distingue em muito do que nós tínhamos anteriormente. Vigia a Emenda Constitucional nº 1, de 69, e que, portanto, representava uma Constituição outorgada e esta representação correspondia precisamente a uma Constituição que não expressava o anseio da sociedade brasileira a uma vivência democrática. Portanto, a nova Constituição reescreve essa história, reinstala a democracia e o Estado de Direito e, ao mesmo tempo, estabelece um novo pacto no sistema de justiça, reordenando os tribunais superiores, criando novas instâncias, como o Superior Tribunal de Justiça, redesenhando o Supremo Tribunal Federal e, obviamente, contemplando um conjunto de circunstâncias na área da saúde, da educação, da segurança, do meio ambiente, da ordem econômica, que passaram a espelhar um documento que se tornou um exemplar relevante para as famílias jurídicas contemporâneas. Por isso, há 37 anos, o Brasil tem uma bússola segura para a vivência em democracia.

 

Imprensa: E em relação ao cenário internacional, ministro, a nossa Constituição também traz inovações em relação a outros textos constitucionais de outros países?

“O Supremo foi delegado a ser o guardião da Constituição Cidadã”, resume o presidente do STF. (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil)

Fachin: A Constituição brasileira é dotada de um conjunto de singularidades, porque as condições histórico-culturais que o Brasil vivenciava na década de 80, já marchando para o final da década de 80, não tem necessariamente uma simetria com os aspectos históricos constitucionais de outros países. Mas é claro que é possível fazer um juízo com alguma comparação possível respeitada essa peculiaridade histórico-funcional dos países com constituições aqui da América Latina, que é o caso da Constituição da Colômbia, ou com constituições da Europa continental, desde a famosa e conhecida Constituição portuguesa, que também redemocratizou Portugal, ou voltando um pouco mais no tempo, no caso da Alemanha, com a Lei Fundamental de Bom do pós-guerra, que de certa maneira inaugura um novo tempo das constituições como um documento político-institucional de defesa dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Este movimento se espraia e o Brasil, obviamente, algumas décadas depois, se insere nessa perspectiva de ter uma Constituição que não seja apenas organizadora do Estado, dos poderes do Estado e, portanto, da administração pública e do funcionamento dos poderes. A nossa Constituição passou a ser uma Constituição que organiza a vida em sociedade, que diz respeito ao cotidiano das pessoas. E essa introjeção da Constituição no cotidiano das pessoas derivou precisamente do fato de que essa Constituição emergiu das aspirações derivadas do cotidiano dos mais diversos segmentos que se manifestaram na Constituinte. A nossa Constituinte, embora não tenha sido originária no sentido técnico, foi o Congresso que se converteu em Assembleia Nacional Constituinte, mas ela foi porosa o suficiente para contemplar interesses de trabalhadores, empresários, interesses das comunidades indígenas, interesses dos processos produtivos da agricultura, interesses, obviamente, do meio ambiente, interesses do desenvolvimento econômico e, portanto, ela procurou ser a expressão de uma comunhão de vida numa sociedade que foi projetada para ser livre, justa e solidária. Esse é o estatuto da Constituição, o estatuto da justiça, da liberdade e da solidariedade.

 

Imprensa: O senhor acha que o momento do país recém saído de uma ditadura cívico-militar em que a Constituição foi feita tem a ver, inclusive, com essa garantia que a Constituição dá para o cidadão?

O ministro considera que “o equilíbrio entre iniciativa privada e direitos dos trabalhadores é uma busca permanente da Constituição”. (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil)

Fachin: Entendo que sim. Eis que o artigo 5º da Constituição pode-se dizer que ele é o coração deste estatuto constitucional. Ele enuncia o modo de ser e de estar na vida em sociedade e dá cidadania em relação ao Estado. Ele, na verdade, traduz num poder legítimo que se dá aos cidadãos e aos cidadãos, não apenas nas suas relações com o Estado, para obstar o arbítrio do Estado, eis que vimos de uma experiência autoritária e, portanto, autocrática, mas também na dimensão de serem aplicados os direitos fundamentais nas relações entre particulares. Por isso, ela abre enunciando os direitos fundamentais como a igualdade, a liberdade e a propriedade, ou seja, também assegurando a proteção das titularidades que cumpram sua função social e, no inciso 1º, logo traduz uma enunciação imperativa da igualdade entre homens e mulheres. Portanto, esse artigo e todos os seus incisos, são, de algum modo, uma Constituição dentro da Constituição. Tamanha a importância que o artigo 5º tem, tamanha o abrigo que ele deu, precisamente, para que o nunca mais da ditadura encontrasse na Constituição a principal fortaleza de resistência. E, para guardar essa fortaleza, foi indicado um guardião, que é o Supremo Tribunal Federal.

 

Imprensa: Ministro, e além das garantias individuais e sociais, da separação e equilíbrio entre os poderes, a Constituição também fala muito em soberania, que é um tema atualmente super importante em tempos de globalização, não?

Fachin considera que “a soberania contemporânea não pode ser um óbice à proteção internacional de direitos humanos”. (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil)

Fachin: É verdade. E aqui é preciso, digamos, temperar um pouco esse conceito para que ele seja compreendido na devida perspectiva histórico-social, quer do presente, quer do pretérito, que construiu, no direito moderno, o conceito de Estado-nação. Notemos que o conceito de Estado-nação edificou uma percepção da soberania, por assim dizer, levantando fronteiras e estabelecendo quase que posições de intransponibilidade. Nada obstante, de algum tempo para cá, de modo legítimo e, no meu modo de ver também, de maneira bastante elogiável, tratados e convenções internacionais que protegem direitos humanos, como, por exemplo, o direito das crianças, os direitos civis e políticos, começaram a formar uma ordem transnacional e que, na medida em que os países, de maneira regular e legítima, aderiram a essa ordem, e muitos, obviamente, participaram da sua formulação, esses tratados e convenções internacionais são internalizados na ordem jurídica interna. Por isso, o primeiro temperamento que há de se fazer, o primeiro conceito de soberania, que o conceito de soberania, visto contemporaneamente, não pode ser um óbice à incidência desses tratados e convenções internacionais no âmbito interno. Por isso, nós temos defendido, não apenas no Brasil, mas especialmente aqui no Brasil, como magistrado constitucional, eu tenho defendido que todo juiz, toda juíza brasileira é um juiz ou uma juíza da Constituição e, ao mesmo tempo, é um juiz ou uma juíza do sistema interamericano de proteção de direitos humanos, porque também está ele, por assim dizer, vinculado à ordem jurídica interna e à ordem jurídica internalizada. E, por isso, o horizonte, que ainda espero que o Supremo não tarde para desenvolver, diz respeito ao controle de convencionalidade como a expressão mais avançada do controle de constitucionalidade. Portanto, esse é o primeiro temperamento. O segundo temperamento diz respeito à autodeterminação dos povos. Esse conceito legítimo de soberania significa que nenhum país, com qualquer argumento que seja, está legitimado a ferir a autodeterminação de outro país. E essa autodeterminação pode ser na área econômica, pode ser na sua dimensão política, pode ser uma expressão de sua institucionalidade. Portanto, quando um país se imiscui na ordem jurídica alheia, querendo interferir no funcionamento do sistema judiciário deste país ou querendo provocar consequências econômicas que derivam de uma concepção hegemônica da preponderância que uma economia forte deseja realizar sobre uma economia um pouco mais débil, isto é, induvidosamente, um atentado à soberania. Portanto, um atentado à autodeterminação de quem se afirma na identidade nacional como povo, que tem valores a proteger e esses valores significam rejeitar qualquer tipo de interferência.

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Imprensa: O senhor acha que tem um bom equilíbrio na Constituição entre a garantia da iniciativa privada e o trabalho e o trabalhador? O senhor acha que a Constituição é bem equilibrada nesse tema?

Há dez anos na Suprema Corte, o ministro avalia que a atual Constituição federal “projetou uma sociedade livre, justa e solidária”. (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil)

Fachin: Em meu modo de ver, a Constituição buscou aí uma temperança, buscou alcançar esse equilíbrio. Nada obstante como a sociedade é dinâmica, o desenho inicial foi gradativamente desafiado pela mudança, por exemplo, no mundo do trabalho. À época que entrou em vigor a Constituição de 1988 falava-se muito pouco e quase nada em teletrabalho. Estamos, digamos assim, no engatinhar da rede mundial de computadores, estamos sorvendo os primeiros efeitos da revolução tecnológica, nem se falava propriamente dito em inteligência artificial, portanto, o mundo nessa colmeia digital que nós vivemos hoje transformou-se substancialmente. O que gerou e tem gerado algumas tensões, por exemplo, eu sou relator aqui no Supremo Tribunal Federal, do tema da chamada uberização, afinal de contas há ou não contrato de trabalho, em não havendo contrato de trabalho qual é a relação jurídica que há, portanto essas tensões implicam muitas vezes numa disputa legítima de interesses contrapostos que vão ser mediados pelo tribunal, procurando extrair da Constituição, dos seus princípios e portanto de suas normas, elementos que permitem encontrar uma solução correta e atualizadora diante desses novos conflitos. Por isso aquele equilíbrio inicial recebeu e tem recebido algumas tensões desse meio do caminho, mas eu entendo com uma certa naturalidade que essas tensões eram, por assim dizer, até mesmo esperadas e de algum modo são bem-vindas, porque elas dão a riqueza da dinamicidade de uma Constituição viva, de um corpo funcional de normas que é um corpo funcional de normas vivo. Qual é o desafio que tem o tribunal encarregado de dar essa densificação concreta? O desafio é fazer isso com previsibilidade, com estabilidade, com integridade, que são as boas características de uma jurisprudência. Portanto, esse equilíbrio é um equilíbrio que representa uma busca permanente, entendo que a Constituição tem um ferramental para esse equilíbrio ser encontrado. Na ordem econômica há, por assim dizer, princípios do Estado Social e, ao mesmo tempo, certas emanações do Estado Liberal, ou seja, este casamento que às vezes pode ser uma união um pouco instável, mas ele representa a opção que a Constituição fez para assegurar, como deve ser assegurado, porque é uma garantia constitucional, a livre iniciativa, mas, ao mesmo tempo, assegurar a vida digna dos trabalhadores. Esse sopesamento está na Constituição, por isso entendo que é uma Constituição que andou com temperança também nesta matéria.

 

Imprensa: A Constituição tem 37 anos de vigência. Desde o começo da República, é a segunda que mais esteve em vigência. É uma Constituição firme, abrangente, que garante direitos a trabalhadores e a empresas, mas uma Constituição dinâmica, que permite alterações, que permite acompanhar o tempo. Essa relação ajuda a manter a democracia, garantir a estabilidade?

“A fundamentação da decisão é uma espécie de prestação de contas ao cidadão”, acredita Fachin. (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil)

Fachin: Eu entendo que a Constituição de 88 é, talvez, a principal responsável pela estabilidade político-institucional que o Brasil vivenciou nesses 37 anos. E vejam, não precisa recordar, as inúmeras turbulências que nesse período foram enfrentadas. Não só impedimentos de presidente da República, como um conjunto expressivo de escândalos de corrupção na administração pública. Nós tivemos, portanto, um período vivo, dinâmico e, ao mesmo tempo, muitas vezes rugoso. E a Constituição, nada obstante tenha sido emendada mais de 100 vezes, mas o seu núcleo central, que é a garantia do Estado de Direito Democrático e das cláusulas pétreas da Constituição, esse núcleo central foi mantido. E, ao ser mantido, esse núcleo manteve o próprio Estado de Direito e a sociedade democrática. Por uma circunstância muito especial, que, aliás, decorre de estudos aqui, dentre outros, de um professor do UnB [Universidade de Brasília], o professor Menelique de Carvalho Neto, que, com justa razão, diz que não apenas a Constituição foi constituída pela sociedade brasileira em 88, mas, em verdade, a Constituição é que constituiu uma nova sociedade. A Constituição é que edificou um conjunto de elementos edificadores de um novo estatuto social. E, portanto, esse redesenho criou vasos comunicantes entre o estatuto constitucionalizado e a Constituição da vida concreta das pessoas. Portanto, não dissociou a Constituição real da Constituição emergente do texto constituinte. Essa proximidade entre o real e o formulado, entre a formulação positivada e aquilo vivenciado, fez com que a Constituição apresentasse essa dimensão de uma fortaleza e contribuísse enormemente para, diante de tantas ameaças de ruptura, o Brasil tivesse mudanças sem ruptura. O Brasil preserva essa transição democrática que se instalou em 88 e, ao mesmo tempo, por assim dizer, [para enfrentar] bem, com mecanismos aptos a responder às turbulências dos movimentos políticos e institucionais nesse período. Portanto, o Brasil pode se orgulhar da Constituição que tem, porque a Constituição que tem se orgulha do país que tem honrado esse texto constitucional.

 

Imprensa: O STF, hoje, tem um lugar bastante central no dia a dia do país. Isso é fruto das disposições contidas na Constituição de 1988. A Suprema Corte teve as atribuições e as competências aumentadas com a Constituição de 1988?

Advogado de movimentos sociais antes de ingressar no STF, Fachin vê “o escrutínio público das decisões do STF” como “saudável para a sociedade livre” (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil)

Fachin: Esta resposta precisa ser compreendida também do ponto de vista histórico e institucional. Se nós olharmos o Supremo Tribunal Federal do período em que vivemos sob o arbítrio ditatorial no Brasil, nós veremos que o Supremo Tribunal Federal levantou aqui, pela voz expressiva de um número também expressivo de ministro, levantou a sua voz contra as arbitrariedades e, sendo chamado a falar, quer pela via de habeas corpus, quer pela via de outros instrumentos, ministros houve nesse tribunal que se alçaram na resistência da redução à pó do Estado de Direito Democrático naquele momento. Portanto, o Supremo já tem este legado do qual os ministros da atualidade não podem se afastar e não têm se afastado. O Supremo da Contemporaneidade honra a melhor tradição daquele Supremo Tribunal Federal que não se vergou aos interesses autoritários de plantão, não se vergou ao contingente, mas se manteve fiel ao que é estrutural. Porque um juiz constitucional é, antes de tudo, fiel ao Estado de Direito, ao Estado de Direito numa república e numa democracia. Portanto, ele não subscreve o autoritarismo, ele não subscreve aquilo que atenta contra a vivência democrática. É claro que as garantias constitucionais e um conjunto de elementos que são, por assim dizer, vivificadores da democracia foram soterrados naquele período da longa noite dos 21 anos e, aos poucos, a sociedade brasileira e segmentos expressivos da sociedade brasileira foram em busca dessa restauração e a conseguiram. E a conseguiram de tal modo que a Constituição de 88 representa, portanto, um passo dessa conquista da reinstalação do Estado de Direito Democrático. Mas o legislador constituinte, na sua clarividência ou sabedoria, entendeu que esse estatuto precisava ter salvaguardas e, ele também, garantias. As salvaguardas estabelecidas nas Cláusulas Pétreas, estabeleceram a subordinação do poder militar ao poder civil. As salvaguardas, portanto, estão espraiadas no texto constitucional, mas, ao mesmo tempo, deferiu o papel de guardião a um tribunal. E, como à época não prevaleceu a ideia da criação de um tribunal constitucional que se ocupasse disso, o Supremo Tribunal Federal teve esta missão nobre e importante delegada a si.

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Para Fachin, “a Constituição de 1988 é a principal responsável pela estabilidade político-institucional do Brasil”. (Foto: Valter Campanato / Agência Brasil)

E é por isso que o Supremo tem sido chamado a ser guardião da Constituição. E, como a Constituição acabou, por assim dizer, espraiando-se na vida cotidiana, o Supremo cuida de litígios que, muitas vezes, nascem de circunstâncias como o desligamento da luz numa dada residência pela falta de pagamento. E de um litígio que, aparentemente, seria tão pequeno, mas que pode dizer respeito a um direito fundamental das pessoas de carne e osso que têm necessidades e que são, portanto, sujeitos de necessidade, sujeitos de direito que, ao lado de cumprirem seus deveres, também buscam o Estado Juiz, não apenas para ter direitos, mas, muitas vezes, para ter direito a ter o direito, que é o acesso à justiça. Por isso, o Supremo Tribunal Federal foi, gradativamente, chamado a se pronunciar sobre um volume expressivo de matérias e chegamos a essa realidade contemporânea, inclusive em matéria penal, que, a rigor, pode-se dizer, pelo menos assim entendo, não é exatamente uma matéria própria de uma corte constitucional. Uma corte constitucional, numa república, não deveria, necessariamente, ocupar-se desses temas. Numa república, obviamente, o chamado foro por prerrogativa de função deveria ser uma exceção excepcional, excepcionalíssima, mas essa delegação ao Supremo acabou, obviamente, trazendo para o Supremo Tribunal Federal uma carga mais pesada para esta carroceria de questões todas trazidas ao âmbito constitucional.

 

Imprensa: E, nesses 37 anos, muitas decisões do STF foram tomadas com base no texto constitucional e garantiram direitos a diversos grupos, como o reconhecimento de uniões homoafetivas, a derrubada da lei de liberdade de imprensa, todas as questões ligadas aos direitos dos povos indígenas, criminalização de condutas homotransfóbicas, possibilidade de pesquisas com células troncoembrionárias, o caso Helwanger, que tratou de antissemitismo, racismo, direitos de greve de servidores públicos, nepotismo, marco temporal das terras indígenas, a constitucionalidade da lei Maria da Penha, interrupção de gravidez em casos de anencefalia, e muitos outros casos e tudo é fruto do texto constitucional, ministro?

Defendido à época de sua indicação ao STF pelo ex-senador Álvaro Dias (Podemos-PR), o ministro defende “a publicidade e a transparência” como “valores inerentes à democracia”. (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil)

Fachin: Sem dúvida, [este é] o histórico das decisões, pelo menos nesses últimos dez anos que eu estou aqui no tribunal, e eu estava aqui lembrando também da decisão importante sobre o fundo Amazônia, que o tribunal tomou aqui, essa decisão recente da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, o estado de coisa inconstitucional nos presídios, no sistema prisional, e toda a atenção à população carcerária. Há diversas compreensões que nós tivemos do parentesco socioafetivo, da licença-maternidade, enfim. Há uma gama expressiva de decisões realmente importantes e, digamos assim, nesta medida que o tempo do presente faz uma fotografia bastante robusta do Supremo Tribunal Federal. Agora, admitamos também que isso carregou também o peso da responsabilidade, porque o horizonte de exposição do tribunal alargou-se imensamente. Quando o tribunal decidiu, foi uma ação que eu mesmo relatei, pelo ensino inclusivo, numa ADPF, que discutia o direito das crianças com deficiência e o ensino inclusivo, e que há, obviamente, uma controvérsia posta e o Supremo tomou uma posição em favor do ensino inclusivo, isso alarga o horizonte de exposição, porque são matérias que, obviamente, se situam num plano, digamos assim, de controvérsia, como, por exemplo, a educação doméstica, o chamado ‘homeschooling’, ou há outras expressões melhores até do que essa, que também é uma matéria controvertida nestes temas. Portanto, tudo isso representou e tem representado um grande e bom desafio ao Supremo Tribunal Federal, que, na medida do possível, tem procurado responder esses desafios e fazê-lo da melhor maneira possível.

 

Imprensa: Os ministros não decidem nada de cabeça, não é vontade própria, não é porque acham determinada coisa, se baseiam sempre no texto constitucional, não é isso? Para se fazer valer as leis, decisões, normas, elas precisam estar sempre em harmonia com a Constituição, porque a gente sempre ouve muita crítica disso, de que o Supremo decide alguma coisa como se fosse da cabeça dos senhores ministros. E não, os senhores ministros leem a Constituição, leem o que está sendo questionado, para ver se elas são compatíveis, se elas são harmônicas. Esse é o papel fundamental do Supremo, não é, ministro?

Indicado para o cargo pela ex-presidenta Dilma Rousseff, Fachin afirma que “o Supremo honra a tradição de não se vergar a interesses autoritários”. (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil)

Fachin: Não há dúvida. A consciência de um magistrado, especialmente de um magistrado constitucional, é a racionalidade sistemática e objetiva que está na Constituição, que está no ordenamento jurídico constitucional. Não se trata de uma consciência individual, não se trata, nem deve se tratar, de uma percepção que cada ministro possa ter sobre esta ou aquela realidade. Porque o exercício da verdadeira imparcialidade corresponde não apenas a uma imparcialidade em relação ao caso concreto, mas também a uma imparcialidade em sentido amplo, que compreende que o magistrado, antes de tudo, deve ser antes de tudo, juiz de si mesmo, para que ele aplique racional e objetivamente aquilo que está inscrito na ordem jurídica. O magistrado é um tradutor da ordem jurídica para o caso concreto. Ele não é um criador de normas. Ele é um tradutor da norma jurídica prevista, dessa formulação que está no ordenamento jurídico e que deve ser trazida para o caso concreto e buscar, nesse caso concreto, a solução correta não de acordo com as convicções pessoais, mas de acordo com aquilo que está espraiado no texto constitucional. E, ao fazer isso, o Supremo Tribunal Federal decide os pedidos que aqui chegam. Portanto, o Supremo é demandado, quer no chamado controle concentrado e com solidariedade, por meio de uma arguição de descumprimento preceitual fundamental, de uma ação que busque declarar inconstitucionalidade, ou uma ação que vem aqui para declarar a constitucionalidade de uma lei, mediante um rol, um elenco de pessoas e entidades legitimadas a fazer isso. E onde estão previstas essas pessoas? Na Constituição. O Supremo não inventa essas regras, mas o Supremo as aplica. E, ao aplicá-las, como sabemos, faz isso publicamente. As sessões são públicas, as decisões do Supremo Tribunal Federal prestam contas das suas motivações, a fundamentação da decisão é uma espécie de ‘accountability’ judicial, o juiz ou o colegiado, ao fundamentar a sua decisão, está prestando contas ao jurisdicionado de quais são os fundamentos racionais, sistemáticos e objetivos que estão sendo usados para decidir aquela matéria. E aí é que se faz o escrutínio das decisões judiciais. É saudável que, numa sociedade livre como a sociedade brasileira, se faça o escrutínio das decisões do Supremo Tribunal Federal. E, nesse escrutínio, há quem aplauda, há quem critique, e isso é mais do que saudável, porque esse escrutínio integra a própria prestação de contas de quem decide.

O presidente do STF afirmou que “o Brasil pode se orgulhar da Constituição que tem, e ela se orgulha do país que a honra”. (Foto: Valter Campanato / Agência Brasil)

E é nesta medida que eu vejo que o Supremo Tribunal Federal, ao responder essas demandas e ao construir essas respostas não só publicamente, mas muitas vezes em público e ao vivo nas sessões transmitidas pela TV Justiça, ele está cumprindo a sua missão constitucional. Pode-se dizer, muitas vezes, que seria um exagero a transmissão ao vivo das sessões do Supremo Tribunal Federal. A percepção que tenho, todavia, é que se a dose do medicamento é incorreta, o medicamento, todavia, é correto. Porque transparência, publicidade, são valores inerentes à democracia. A Suprema Corte Norte-Americana decide a portas fechadas há muitos e muitos anos. Acho que no mundo é um dos poucos casos, a TV Justiça, se não me engano, é um. A TV Justiça é, na verdade, uma exceção. As decisões são dadas a conhecer, são publicadas. E, portanto, nós, nada obstante todas as vicissitudes, creio que temos uma metodologia da qual podemos nos orgulhar. Porque até aquilo que ela possa ter de defeituoso, em meu modo de ver, se converte numa virtude. Porque, em matéria de transparência, eu prefiro pecar pelo excesso do que abreviar e, muitas vezes, impedir a divulgação e a publicidade.

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