ENTREVISTA: “O ser humano cria uma nova dança e um novo canto depois que ele sai de uma situação de vida e morte”

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Por Ilson Sanches

Milton Pereira de Pinho, mais conhecido como Guapo, é um artista completo. Ele iniciou a sua carreira na música por influência familiar, mas não se limitou a ser apenas um músico. Ele usou todo o seu interesse pela profissão, tornou-se um grande pesquisador e descobriu coisas incríveis sobre vários estilos musicais.

Dentre suas pesquisas, 40 anos de vida foram dedicados ao levantamento da geologia, da antropologia, das influências e do processo histórico da música mato-grossense e todo o conhecimento foi transformado na obra “Remedeia Co Que Tem”, livro que hoje é muito utilizado por professores das mais diversas universidades e agrega conhecimento aos alunos dos cursos de música.

Guapo foi um dos grandes responsáveis pela ascensão do rasqueado cuiabano, pois foi o idealizador da Rua do Rasqueado, projeto que levou o ritmo para o centro da cidade e causou grande efervescência, tendo como palco a praça Caetano de Albuquerque.

Para saber um pouco mais sobre suas descobertas, o grupo RDM conversou com Guapo e parte da entrevista segue reproduzida a seguir.

RDM – Como começou a sua história como músico e como pesquisador da música?

Guapo – A minha história começou em Cáceres. Sou neto de cururueiro. Meu avô, pai da minha mãe, tocava viola de cocho e cantava. Minha avó, por parte de pai, era pianista e meu pai também tocava violão. Então essa parte musical já vem de berço dos dois lados. E o interesse que eu desenvolvi sobre pesquisa e sobre o conhecimento, porque eu trabalho sobre a luz da antropologia e psicologia quando eu vou explicar cultura, eu herdei do meu pai. Minha mãe era semianalfabeta, casou com meu pai que era extremamente intelectual, falava cinco idiomas, estudioso, físico, matemático, químico. Ele era perspicaz com a ciência. Já minha mãe era uma mulher simplória de beira de rio, lavadeira de roupa. Então eu peguei do meu pai essa parte de pesquisa científica e ao mesmo tempo o sentimento de uma história, que é o que minha mãe passava pra mim. Então eu juntei as duas coisas. Eu me sinto muito equilibrado com isso aí, porque eu consegui chegar num ponto que eu escrevi muita coisa sobre a música mato-grossense. Meu livro hoje está sendo levado pra tudo quanto é mestrado. E por outro lado também a música, como por exemplo, o rasqueado cuiabano, que faz parte da minha luta. O rasqueado parece muito com o jazz e foram criados na mesma época. Eu sempre falo que toda dança, se você observar a história do mundo na psicologia e na antropologia, você vai perceber que toda vez que tem um conflito forte ou uma pandemia, aparece uma nova dança ou novo canto. Mato Grosso não foi diferente. O mais antigo que eu consegui ver foi na Itália, que teve a pandemia da peste negra e antes de terminar o povo italiano tinha criado a dança da tarantela. Uma música que veio como uma força de volta à vida. Lá nos Estados Unidos, antes da Guerra de Secessão não tinha jazz, não tinha blues, não tinha nada. Depois da guerra que apareceu. Tudo veio depois da guerra. A guerra aqui na América do Sul contra a Tríplice Aliança fez nascer o rasqueado. E o que aconteceu na Argentina? O tango. O tango veio depois da guerra. Essa é uma observação que eu fiz de que o ser humano cria uma nova dança e um novo canto depois que ele sai de uma situação de vida e morte em grande proporção, que pode ser guerra, pode ser pandemia ou catástrofe.

RDM – Qual problema fez surgir o rasqueado?

Guapo – Aqui o caso foi o seguinte. Quando eles fizeram Várzea Grande, a Várzea Grande não existia na Guerra do Paraguai. Ali era um campo de concentração de refugiados lá do Sul. A interação de vida deles é que fez surgir o rasqueado. Assim como lá nos Estados Unidos. Exatamente quando acaba a Guerra de Secessão, os negros estavam libertados, porque no Norte não tinha mais escravidão. Eles não sabiam o que fazer e saíram pelos campos, como eu cito no meu livro, com violão, violino e uma gaita de boca para tocar em troca de comida e garrafa de uísque.

RDM – Hoje o rasqueado é um dos principais ritmos mato-grossenses. Como ele chegou no patamar de ser tocado até por orquestras?

Guapo – Uma das coisas que eu que pauto sobre o rasqueado é que ele já tinha saído da viola de cocho, do ganzá e do mocho e passou pro violão, aí passou pra banda marcial, lá no começo do século XX, depois os conjuntos, que tinham guitarra, bateria, baixo. O rasqueado não tinha entrado na orquestra e quem levou fui eu.

RDM – O rasqueado já nasceu como é hoje?

Guapo – Existia dois tipos de rasqueado quando começou. Primeiro o pré-rasqueado, aliás o João Eloy é campeão de cantar pré-rasqueado, que é aquela música simples, com dois acordes, parecido com o siriri. Surgiu quando os caras estavam lá na beira do rio fazendo improviso de verso, porque o rasqueado tinha essa parte de improvisar versos. Até hoje na baixada tem quem faz isso. Então esse era o pré-rasqueado, que só vai tornar rasqueado cuiabano quando ele entra na partitura, porque aí a partitura vai trabalhar aquela coisa toda que forma a música, dá uma conotação real da música, tal como aconteceu no samba também. O samba nasceu junto com o rasqueado também, porque no Rio de Janeiro também foi depois da guerra. Primeiro existiu o chorinho, que é mais velho que o samba.

RDM – E o lambadão, como surgiu?

Guapo – O lambadão teve uma história interessante. Nasceu com o pessoal de Poconé e o João Muralha. Aquele pessoal tentou tocar a lambada do Pará, do Pinduca, não tocou direito e propagou. Só que o seguinte, o lambadão é uma dança que o cara precisa ter uma destreza de academia, não é uma dança fácil. Então o que que aconteceu? Agora eles criaram uma tal de lambadinha, que é parecido com o rasqueado, e é o que mais toca na noite cuiabana. A lambadinha é uma música simples, uma letra brega e você pode dançar a noite inteira que você não vai ficar suado.

RDM – Porque surgiu a música?

Guapo – A música nasce de uma necessidade própria do ser humano, daquela vontade se manifestar, de jogar pra fora o seu sentimento interior.