“Nosso linguajar é o mais difícil e o mais bonito”

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(Foto: Diogo Diógenes)

Por Vanessa Moreno

Pode até causar estranheza, mas o linguajar mato-grossense não passa de uma grande mistura de influências. Um dialeto riquíssimo que herdou características espanholas, portuguesas e indígenas de várias etnias brasileiras. Esse peculiar modo de falar, desde 2013, tornou-se Patrimônio Imaterial do Estado, protegido pelo Poder Público para que não corra o risco de desaparecer.

Embora Mato Grosso seja muito grande, é na baixada cuiabana e no Pantanal que o sotaque mais apurado é identificado. Quem explica é o pesquisador Milton Pereira de Pinho, mais conhecido como Guapo. “O linguajar vernacular é da baixada cuiabana e do Pantanal, não se fala em outra região do estado, nem na primeira capital Vila Bela”.

Além de pesquisador, Guapo também é cantor, compositor, produtor cultural e escritor. Ele é natural de Cáceres, a cidade que tem como apelido “A Princesinha do Pantanal”, porque ali o bioma mostra a sua exuberância o tempo todo, seja no Rio Paraguai, que margeia a cidade ou no estilo de vida do pescador.

O município está distante cerca de 217 km de Cuiabá e, entre história e modernidade, a cultura raiz pantaneira ainda sobrevive naquele lugar.

Foi lá onde Guapo participou e presenciou, durante toda sua infância e juventude, as expressões do cotidiano pantaneiro, que se tornaram fatos memoráveis e hoje estão impressos em forma de poemas, contos e crônicas no seu livro ‘Um pé de verso…outro de cantiga’.

O linguajar mato-grossense tem como base o português do norte de Portugal, de onde herdou uma acentuação prolongada quando há o encontro das letras A e N, o que também é muito comum no idioma espanhol, outra língua que influenciou o modo de falar em Mato Grosso. Exemplo: grAANNde, poconeAANNo, palavras que, quando faladas, chegam a parecer que foram acentuadas (gránde, poconeáno).

Outra herança deixada pelos portugueses e espanhóis é a troca da letra L pela letra R. Exemplos: pranta ao invés de planta; craro ao invés de claro e dipromata ao invés de diplomata. “Tudo isso tem a ver com a indefinição do idioma tanto na Galícia (ou Galiza, comunidade autônoma na Espanha), quanto no tempo de colonização do país”, destaca Guapo. O mesmo motivo vale para as alterações nas pronúncias tchuva, cotcho, tchave, dgente e cervedja, por exemplo, que de acordo com o pesquisador “misturou com a influência espanhola, pós-Guerra do Paraguai”.

O linguajar indígena também deu a sua contribuição e os bororos trouxeram aos mato-grossenses uma linguagem sem diferença entre os gêneros masculino e feminino e Guapo nos dá o exemplo “– Vô lá no Maria/Num metche co muié meu”.

E quanto ao R puxado, ás vezes denominado até de R caipira, também existe uma explicação: “é chamado reflexo, comum em toda a região que falava a chamada Língua Geral, também conhecida como “Nhecatu” (fala boa) e que não passava de uma mistura de português com o tupi-guarani”, conta Guapo.

O linguajar mato-grossense é único e distinto de todos os outros estados do país. O que já foi motivo de vergonha, por conta da peculiaridade, hoje é motivo de muito orgulho para os que nasceram aqui e até para quem veio de fora. “A consciência maior artística da Vanguarda Nativista, no começo dos anos 90, do século passado, tirou essa vergonha, porque, graças aos trabalhos do movimento na minha arte, da Zuleica e Vera, do Liu Arruda, Nico e Lau, do poeta Moisés Martins, Pescuma, Roberto Lucialdo e tantos outros, praticamente não vejo mais essa rejeição. Pelo contrário há pessoas que se orgulham em falar o nosso linguajar”, ressalta Milton, que aproveita para contar que, há mais ou menos 15 anos, fez uma participação no Jornal Nacional, da Rede Globo, onde disse à jornalista Fátima Bernardes que o falar cuiabano é o mais difícil de imitar “realmente, nosso linguajar é o mais difícil e o mais bonito”.

Quem é Guapo?

Mato-grossense, pantaneiro, pesquisador, músico, compositor, poeta e escritor. Milton Pereira de Pinho, o Guapo, é um dos expoentes da cultura mato-grossense. Ele veio de Cáceres, mas recebeu um título de cidadão cuiabano, porque assumiu a responsabilidade de tirar o rasqueado das periferias e levar para o mundo.

A música está na raiz da vida desse artista mato-grossense e toda a sua educação está baseada na música. “Eu tenho três paixões: música, cinema e literatura”, revela.

Em 1984 sua carreira de músico começou a ganhar forma ao iniciar o trabalho de resgate da música mato-grossense. Em 1993, Guapo idealizou e colocou em prática o projeto Rua do Rasqueado, que durante mais de 20 anos promoveu uma efervescência no Centro Histórico da capital, dando força para que músicos da baixada cuiabana pudessem desenvolver novos ritmos, como o lambadão e a lambadinha.

Ele tem quatro CDs gravados, três de músicas próprias, sendo eles: Pantanal Preto e Branco, Resto de Guarania e Som do Berrante Pantaneiro. Além disso, gravou uma produção ao lado da Orquestra de Mato Grosso, intitulada Pantanal Sinfônico.

Como escritor lançou três livros: Um pé de verso…outro de cantiga, um compilado de crônicas e memórias pantaneiras, baseadas em ditos populares contados por terceiros e em histórias que ele mesmo vivenciou ao longo de sua vida; Remedeia Co Que Tem, fruto de 40 anos de pesquisa sobre a formação básica da musicalidade mato-grossense; e No Limiar, novela pós-moderna que acontece em grande parte no interior do Brasil, mais precisamente na região do Araguaia e do Xingu, onde etnias indígenas vivem em conflito com o agronegócio.