Contrário à Lei do Transporte Zero, Chico Peixe afirma: “Não existe riqueza do homem sem recursos naturais”

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Por 15 votos a 8, deputados da Assembleia Legislativa de Mato Grosso, aprovaram no dia 28 de junho de 2023, a Lei denominada Transporte Zero, de número 1.363/2023, que proíbe o transporte, o armazenamento e a comercialização de pescados vindos dos rios de Mato Grosso.

A votação ocorreu com as galerias do plenário lotadas. De um lado indígenas e pescadores, preocupados com a extinção do seu modo de vida, de onde vem o sustento de suas famílias. Do outro, empresários ligados ao turismo, donos de pousadas, pesqueiros e defensores da pesca esportiva, um dos atrativos turísticos do estado.

A fim de esclarecer algumas dúvidas quanto à vida das mais variadas espécies de peixes presentes nos rios mato-grossenses e ainda saber se há risco de extinção dos peixes em Mato Grosso, além de seu posicionamento sobre o projeto Transporte Zero e suas experiências de vida e profissionais, o Grupo RDM ouviu o biólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso, Francisco de Arruda Machado, conhecido popularmente como Chico Peixe, que é um estudioso da vida subaquática.

Além de biólogo e professor, Chico é graduado em História Natural pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), mestre e doutor em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas, pós-doutor pelo Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), tem experiência em ictiologia de peixes continentais e atua principalmente nos temas: peixes, Pantanal Mato-Grossense, Amazônia Mato-Grossense, hábitos alimentares de peixes e história natural de peixes.

RDM– Os seus estudos são todos subaquáticos? Você conhece bem os peixes?

Chico Peixe – A maior parte dos estudos que fiz foram subaquáticos. Esse é um privilégio para eu não fazer inferência. Muitas coisas que eu falo sobre peixe é porque eu sei que eles fazem assim. E depois o privilégio maior é ser filho de um pescador, com avô pescador, com tios pescadores, com primos mais velhos pescadores. Isso é muito agradável, porque possibilitou-me, em seguida à academia, a tirar o imaginário e ficar com a substância daquilo que é o conhecimento empírico maravilhoso dos pescadores.

RDM – E a pesca ela tem uma história muito antiga. Desde antes de Cristo a bíblia registra e é um desenvolver ao longo do tempo, né?

Chico Peixe – Sim. A pesca artesanal antecede Cristo. Jesus tinha quatro apóstolos pescadores e o mais famoso deles é Pedro. A história da humanidade protege os pescadores. Para falar e uma coisa mais recente, quando nasce Cuiabá, o primeiro grande motivo foi o ouro. Concorda? Qual foi o segundo grande motivo? Poucas pessoas sabem, mas foi a água. E qual o terceiro maior motivo? O peixe, porque era o mais abundante, saudável e de fácil concepção. Era fácil você ir pescar, a quantidade era imensa. Eu ainda tive o privilégio de criança ver as redadas aqui naquelas ilhas que foram todas sugadas por dragas. Todo final de tarde a gente ia lá ajudar puxar a rede e pegava seu peixinho. Saía cachara, pintado, dourado.

“Não existe vida na terra sem água, não existe vida animal na terra sem planta e não existe riqueza do homem sem recursos naturais”

RDM – Mato Grosso de modo geral tem uma riqueza de peixes muito grande. Encontrava-se com facilidade, pescava-se com mais intensidade e hoje isso é uma raridade. Hoje é preciso até que sejamos obrigados a tomar decisões através de políticas públicas no sentido da preservação, no sentido da garantia e da segurança alimentar, não é isso, Chico?

Chico Peixe – Sim. Existem certas coisas que precisam ser colocadas nos seus devidos lugares. Como por exemplo, não existe vida na terra sem água. A maioria, se não todos, sabem disso, mas poucos lembram. Então, repetindo, não existe vida na terra sem água, não existe vida animal na terra sem planta e não existe riqueza do homem sem recursos naturais. O Brasil talvez seja um dos três maiores países com riquezas naturais do mundo, se não é o primeiro. O Brasil tem 17% da água de superfície do mundo, tem cinco aquíferos pelos menos, o mais importante deles é o guarani. Então nós somos privilegiados, nós temos praticamente todos os minérios que a gente precisa. O cerrado, que lamentavelmente foi mal estudado, é uma vegetação em clímax. A Amazônia está em evolução, mas o cerrado já chegou no ápice, qualquer plantinha que você tira uma folha tem um princípio ativo. É fantástico! A farmacologia do cerrado é fenomenal. Não é que a Amazônia não tenha também as suas belezas, suas produtividades e seus princípios ativos, não é isso que eu estou dizendo. Eu estou dizendo é que o cerrado é fantástico porque chegou no clímax e a Amazônia está em evolução. Então nós temos no Brasil essa possibilidade da diversificação, temos vários caminhos econômicos para seguir: pela água, pela planta, pelo mineral.

RDM – No Brasil a gente não analisa o que é excludente, mas o que faz parte do todo, né?

Chico Peixe – Exatamente. Como eu sou ecólogo, uma das definições da ecologia é a economia da natureza, então precisamos olhar isso com mais carinho quando vê essas questões. Quando houve a Lei Kandir, por exemplo, foi fantástico para o Brasil todo. Para Mato Grosso foi a redenção, pode ser que tenha economista que não concorde comigo, mas do meu ponto de vista a Lei Kandir foi maravilhosa. Mas precisa da Lei Kandir hoje? A maior parte das pessoas mais ricas do país vem do agronegócio, pelo menos no estado de Mato Grosso. Então, dessa perspectiva, não precisa mais da Lei Kandir. Por que eu falo isso? Porque eu acho indecente eu pagar 41,5% de imposto do meu salário para sustentar esse pessoal. Eu estou falando isso porque eles não pagam imposto. Tem que acabar com a Lei Kandir, eles precisam pagar imposto. Então, concluindo, dos cerca de 2.400 bilionários no mundo, 10% está no Brasil. Então, você tem uma concentração de renda muito alta com pouca distribuição dessas grandes riquezas. Então o Brasil é um país que tem muita riqueza, mas não é rico porque não distribui.

“De uma perspectiva boa, é o pescador artesanal profissional que cuida do rio”

RDM – Nós tivemos recentemente uma questão polêmica né, que é a questão do Transporte Zero, uma situação que já ocorreu no passado. Você pode nos contar essa história?

Chico Peixe – Se eu não estou equivocado, em 2014 tivemos 12 audiências públicas em todo o Estado e a gente ganhou, não passou daquele momento. O nome era Cota Zero. Transporte Zero é só uma nominação diferente, mas é a mesma coisa. Em 2019 voltou, foram cerca de 18 audiências públicas no estado e o governador Mauro Mendes tirou de pauta. Agora ele veio de uma forma extremamente incisiva, de uma forma terrível e extremamente perversa, porque quando a gente analisa o arcabouço legal do ser pescador artesanal enquanto pesca profissional, vem aí aquela história da pesca, que é milenar. Ela vem desde os tempos de memoriais e vai por aí a fora. Então de uma perspectiva boa, é o pescador artesanal profissional que cuida do rio. Existem muitos pescadores, mas estes em uma outra categoria, chamados de criminosos, que pescam com rede. Uma pesca depredatória. Eu não me lembro o artigo da Constituição, mas existe um artigo que fala da livre iniciativa, da livre escolha, que você pode escolher a profissão que você quer. Existe a lei infraconstitucional, que ordena a pesca no Brasil, a lei 11.959, essa eu não esqueci. Nos seus artigos primeiro e segundo, ela tipifica o peixe, que é o animal vertebrado, como recurso pesqueiro e, vai mais profundamente, denomina como recurso alimentar. Só para fazer uma brincadeira mais séria, você lembra quando a mãe falava pra gente não brincar com a comida? É o que estão fazendo com o ‘pesca e solta’. O ‘pesca e solta’ é brincar com comida, porque é uma diversão com perversidade. O homem é o único animal que se diverte com a agonia do outro animal. Isso é perverso demais. Esse é outro privilégio que eu tive, vou exemplificar com três exemplos: pintado e cachara são dois bagres que ao final da boca, quase no esôfago, tem duas caloses ósseas formadas por dentículos, são dentes faringianos. Quando eles abocam a presa, ela vai direto pra lá e isso amassa a cabeça da presa e concomitante eles a engolem. Esse ato ocorre em frações de segundos e eu vi e ouvi isso por baixo d’água. O que acontece? Você coloca a isca no anzol, quando o peixe vai pegar, o anzol perfura o esôfago, as brânquias ou guelras. Não é só na boca. Isso causa hemorragia. O correto é pesque e coma e não pesque e solte, porque peixe é comida. Então quando você solta o bicho, ele fica extremamente estressado, ferido e a primeira coisa que ele faz é ir pra perto das galhadas, dos barrancos e fica mal. Aí vem os peixinhos pequenos e ficam mordiscando, tirando muco do corpo, porque ele está vulnerável. A piranha, por exemplo, é altamente qualificada para perceber que o peixe está vulnerável. Isso causa uma frenesia alimentar, é possível ouvir o barulho do tecido sendo cortado. Eu mergulhava e via isso, porque eu fiz experimentos para saber como as piranhas atacam bichos moribundos. E essa taxa de mortalidade, ela presume ser altíssima. Alguns estudos demandados dão conta que acima de 60% dos peixes, uma vez pescados e solto, morrem até quinze dias depois e no caso do dourado, o dourado é um vigoroso predador, pega com vigor na isca, e aí além das brânquias, que é o pulmão dele (você imagina uma brânquia feriada, é como levar um tiro no pulmão. Então ele fica muito vulnerável, disponível para ser predado) você tem no opérculo uma carne extremamente irrigada e como ele é vigoroso, geralmente o anzol perfura essa bochecha do bicho e ele sangra até a morte. 100% perfurado morre até dias depois, se a piranha não comer antes.

“Alguns estudos demandados dão conta que acima de 60% dos peixes, uma vez pescados e solto, morrem até quinze dias depois.”

RDM – Então não é ‘pesque e solte’ é ‘pesque e mate’? Por que quando você solta, você condena o peixe, é isso?

Chico Peixe – Sim e o terceiro exemplo são os lateralmente achatados, os pacús. Eu fiz uma pescaria com meu colega, José Augusto Ferraz de Lima, que era diretor do Parque Nacional do Pantanal. Ele tinha 501 tags, que é aquela marca colocada no dorso do peixe. Em cerca de três horas nós pegamos 503, mas colocamos as tags nos 501 e, pasmem, 51% tiveram os olhos perfurados. Se na próxima, ele perfurar o outro olho, acabou a vida pra ele, isso se ele não morrer antes né. Então, do meu ponto de vista, isso é perverso. Esse PL 1363 é perverso e mais, ele é criminoso, porque você está tirando o alimento de cerca de dezesseis mil pescadores profissionais que tem na sua profissão a forma que ele consegue sustentar a família e você tira de mais de 30 mil famílias ribeirinhas, em especial as que tem no peixe o único alimento fonte de proteína animal. É muito perverso!

“Esse PL 1363 é perverso e mais, ele é criminoso, porque você está tirando o alimento de cerca de dezesseis mil pescadores profissionais que tem na sua profissão a forma que ele consegue sustentar a família”

RDM – Existe comprovação científica dessa proporcionalidade da retirada do peixe pela pesca e da impossibilidade de voltar a nascer o suficiente? Ou seja, a pesca de fato provoca escassez?

Chico Peixe – A pesca se tornou o motivo maior de concepção de alimento e ao mesmo tempo de uma grande diversão, porque a luta que você faz com o peixe de dá um monte de hormônios da felicidade, do prazer. É muito bom! Eu por exemplo, quando preciso pegar um peixe para os meus estudos e ele é dificultoso, quando eu pego um ou dois exemplares é uma felicidade extrema. Agora imagina o cara lutando, chega lá e puxa uma cachara de 12 kg. É muito gratificante, isso ninguém pode negar, mas podemos fazer as duas coisas, conseguir o alimento e levar pra casa, não soltar. Essa é a base. Então nesse período de tempo, com base nos estudos da Agência Nacional das Águas (ANA), demonstra que tem quase um milhão de pescadores, enquanto antigamente tinha cem. São dez vezes mais. Então se hoje os estoques estão estáveis, e eles comprovaram isso matematicamente dento do estudo de toda a bacia do Alto Paraguai, o que significa? Que não é o peixe que está faltando no rio, é excesso de pescador. Então se você colocar um número aí, você vai ter tantos quilos que saiu naquela época para menos pessoas, são tantos quilos que saem hoje para muitas pessoas.

RDM – Essa lei transporte zero vai trazer prejuízo, problemas sociais? Como você vê isso?

Chico Peixe – O refluir da aprovação, numa hipótese, até porque eu acredito que essa Lei cai, porque é inconstitucional, mas o refluir disso vai ser aumento de índice de criminalidade. Pessoas que não vão conseguir segurar a pressão da fome, a pressão da falta do modo de vida, da falta de trabalho. Vai aumentar o índice de criminalidade e você vai desagregar uma sociedade. Essa é a minha maior preocupação.

Assista à entrevista completa que foi ao ar no dia 30 de junho, no programa Mato Grosso S/A: