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quinta-feira, maio 2, 2024
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Voto impresso: o maná político

No livro Como As Democracias Morrem, os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt afirmam que “falsas acusações de fraude podem minar a confiança pública em eleições, e quando cidadãos não confiam no processo eleitoral, muitas vezes perdem a fé na própria democracia”. É o que estamos assistindo hoje, e não só por parte do Presidente Bolsonaro. Trump, nos EUA, não aceitou a derrota; levando o país a uma crise séria, que culminou com a invasão violenta e criminosa do Capitólio- (O Congresso Americano), violência verbal e física e até, a morte de um policial.

Hoje, Trump está desmoralizado e respondendo a vários processos e seus seguidores sendo processados- vários presos, pelas autoridades judiciais. Trump falou em “crime do século” em 2020, mas não conseguiu convencer nenhum dos mais de 50 juízes que avaliaram suas reclamações. Gastou milhões e está só e isolado. Bolsonaro aceitou o resultado de 2018, mas disse, sem apresentar evidências até hoje, que teria vencido no primeiro turno. O americano falou em fraudes mesmo quando venceu em 2016. Não é coincidência. Inclusive, Bolsonaro vem lançando dúvidas sobre a lisura do pleito e se aceitará caso venha a ser derrotado, o resultado de 2022. Sem voto impresso, disse, não haverá eleição; “Vai ter voto impresso, porque se não tiver voto impresso, sinal de que não vai ter a eleição. Acho que o recado está dado.”

E, parece, sendo entendido pela Câmara e Senado. Não seria melhor e mais barato, prorrogar seu mandato à moda Maduro da Venezuela?. Daí, a obcessão do voto impresso. As urnas eletrônicas, com uso há 25 anos, até o momento, não foi constatada qualquer fraude, por mínima que seja.

De acordo com essa proposta, o voto continuaria sendo feito por meio de urna eletrônica, mas uma impressora mostraria ao eleitor um recibo em papel do voto. Esse papel seria automaticamente depositado em uma outra urna de acrílico, sem passar pela mão do eleitor ou de qualquer outra pessoa. Ou seja, o acoplamento de mais um equipamento eletrônico, que seria aberto em caso de contestações de resultados. O TSE fala em gastos adicionais de 03 bilhões. Quem assegurará a segurança e guarda dessa segunda urna de acrílico? Não pode ser extraviada como ocorreu, no passado, em Mato Grosso, com urnas boiando no rio Cuiabá, por exemplo? Sequestrada? “negociada”? Além das recontagens terem o dom de nunca acabarem ou chegarem ao TSE e STF e, como é usual, dormirem nos escaninhos por anos ou décadas, ou como no famoso julgamento Dilma onde o TSE constatou a fraude financeira mas, desconsiderou a verdade. Não são hipóteses absurdas, leitor/a.

Essa mudança, segundo seus defensores, garantiria mais confiabilidade ao processo eleitoral. Para a deputada federal bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), autora da PEC do voto impresso, a eleição de 2022 só será confiável com a produção desse comprovante em 100% das urnas eletrônicas. Coibindo, assim, a “juristocracia do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)” em questões eleitorais, porque a Corte “boicota” a medida e que a impressão do comprovante de voto é “a solução internacionalmente recomendada — para que as votações eletrônicas possam ser auditadas de forma independente”.

Nenhum país hoje, que eu saiba, fez tal recomendação. No fundo, é uma estratégia recorrente de líderes autoritários de desacreditar as eleições e o processo democrático como um todo. Para eles, contestar a urna é uma oportunidade para avançar num projeto de erosão democrática. Dois exemplos de hoje: a peruana Keiko Fujimori e o israelense Benjamin Netanyahu, ambos derrotados nas urnas. O israelense, disse que está testemunhando “a maior fraude eleitoral da história do país” depois de 12 anos no poder. Keiko Fujimori, filha do ditador peruano Alberto Fujimori, afirma haver “uma clara intenção de boicotar a vontade popular”.

Aliás, nos dois casos, voto impresso. Não seria bom importar a tecnologia do Brasil da urna eletrônica; ou também, não vai funcionar por lá? Contestar eleições é um direito dos políticos em um sistema democrático e um mecanismo importante para apontar fraudes e corrigir injustiças. É recurso disponível a todo e qualquer candidato, de qualquer parte do espectro político. Agora, ganhar no tapetão é outro departamento. Já conhecemos esse jogo e nós, eleitores da “boa época” do voto de papel, conhecemos esse filme. Os autores do livro citado, afirmam que os líderes populistas autoritários de hoje agem estrategicamente visando deslegitimar o processo eleitoral e, assim, a própria democracia, que corroem por dentro: leis mudando instituições, formas de votar, prorrogação de mandatos, etc; sem a necessidade de recorrer ao velho método do golpe de Estado, tão saudoso em tempos atuais.

Ou seja, é ganhar por métodos democráticos o poder e destruí-lo por dentro “democraticamente”. A Europa está aí com alguns exemplos- Polônia, Turquia: mobilizar suas bases de apoio, ampliar seu raio de poder e questionar a legitimidade dos adversários, mudar ou rasgar a constituição, estados de emergência, de sítio “para salvação nacional”, prender jornalistas e condena-los (1500 na Turquia); fechar órgãos de imprensa, etc. Ou seja, contestar a urna eletrônica é mais um passo para se avançar num projeto de erosão do estado democrático de Direito; junto a um eleitorado conservador e alienado, com alta desconfiança das instituições representativas e desprezo a boa parte da classe política, em contexto de crescente uso e erosão nas relações civis-militares, como temos hoje no pais, com a volta dos quartéis, de preferência com o presidente no poder, como o maná celeste.

“A introdução do voto impresso seria uma solução desnecessária para um problema que não existe com o aumento relevante de riscos. O que fizemos com o sistema eletrônico de votação foi derrotar um passado de fraudes que marcaram a história brasileira no tempo do voto de papel”, disse o presidente do TSE- Min. Barroso. O tema poderá ser judicializado e o STF considerar a medida inconstitucional, como já ocorreu com proposta semelhante aprovada em 2015. O TSE já testou o modelo em 2002.

Na ocasião, o voto impresso foi implantado em 150 municípios brasileiros – ao todo, cerca de 7,1 milhões de eleitores tiveram seu voto impresso, de acordo com o tribunal. No Distrito Federal e em Sergipe, todas as seções contaram com o voto em papel. Um relatório do tribunal concluiu que a experiência “demonstrou vários inconvenientes”, “nada agregou em termos de segurança ou transparência” e o pior: criou problemas. O tribunal apontou que nas seções com voto impresso foram observadas filas maiores e um maior porcentual de urnas com defeito. Enfim: esse é o maná buscado- melar o sistema e a eleição. Voltar ao bom tempo dos coronéis políticos, donos do eleitorado, ignorante e de cabresto.

(*) Auremácio Carvalho é Advogado.

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