Sem pacu, pintado, matrinxã, cachara, dourado etc.

Desde sua discussão e aprovação na Assembleia Legislativa em 2023 e, na sequência, entrada em vigor em 1º de janeiro deste ano, a lei que proíbe o transporte, comércio e armazenamento de peixes de rios mato-grossenses por cinco anos é citada na imprensa como lei da Pesca Comercial, ou lei do Transporte Zero, ou lei da Pesca, ou lei da Cota Zero, entre outros apelidos. Percebe-se logo, portanto, que essa polêmica norma legal nem na linguagem jornalística foi consenso, isto é, conseguiu firmar uma denominação única de referência.

Já nas colônias de pescadores e entre os representantes do segmento, a implementação da lei, com o lançamento do Registro Estadual de Pescadores Profissionais (Repesca), só fortaleceu sua rejeição, posição essa, aliás, manifestada desde o início dos debates do texto no legislativo. Os pescadores se julgam os mais prejudicados pela lei. Uma vez cadastrados e habilitados no Repesca, eles receberão um salário-mínimo, pelo período de três anos. Mas, conforme disse um deles, “não queremos esmola, queremos trabalhar e ganhar nosso dinheiro”.

Mesmo com resistência dos envolvidos, que inclusive se mobilizaram contra o Repesca, o executivo estadual, autor da norma, seguiu ‘passando o trator’ sem desacelerar um segundo. Atualmente, em campanha na tevê e em sites, convoca os pescadores para o Repesca, ignorando a análise de inconstitucionalidade da lei pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Da propositura dessa legislação até agora não se notou, de parte do governo, um olhar humanizado para a situação dos pescadores artesanais a partir de sua vigência. Ao contrário.

Na retórica da defesa da lei, o governador Mauro Mendes usou expressões como “pesca não gera riqueza”, “vamos pescar até acabar?”, “Barão é uma das cidades mais pobres de MT” e “muita gente perderá a mamata”. Conhecido como um gestor ‘que busca resultados’, nesse caso da lei da pesca Mendes e seu governo ‘trator’ foram parados pelo Supremo, que recebeu pareceres técnicos contrários à legislação do Ministério da Pesca e Aquicultura, da Advocacia Geral da União (AGU) e da Procuradoria Geral de República, entre outros.

O STF ouviu esses órgãos porque a inconstitucionalidade do texto foi pedida à Corte pelos partidos políticos MDB e PSD. Talvez a mais eloquente demonstração da condenação da medida tenha partido da AGU que, em manifestação enviada ao Supremo, destaca, entre outros argumentos, que a norma “ao propor restrições desproporcionais em prejuízo dos pescadores, afronta os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade do exercício profissional e do exercício dos direitos culturais”. A AGU foi certeira ao apontar a ausência de tom civilizado na lei.

Como cuiabana que nasceu, cresceu e vive até os dias de hoje saboreando peixe de rio, a luta dos pescadores ganhou minha solidariedade de pronto. Lembro com saudade que, décadas atrás, no quintal da casa da minha avó Almerinda Rosa, na rua Barão de Melgaço, avançando no Porto, embaixo de uma mangueira havia um tablado de madeira que ela usava para escamar e postejar peixe. Nos almoços de domingo, pacu, pintado e cachara eram servidos em quantidade e de vários jeitos – podiam ser fritos, assados ou ensopados.

Eram outros tempos sim! Havia fartura de peixe nos rios. Mesmo sem a abundância de antes, com o passar dos anos, esse hábito de saborear pratos à base de peixe do rio permanece arraigado culturalmente nos lares cuiabanos e vai sendo passado entre gerações nas famílias. Na minha, por exemplo, filhos, sobrinhos, incluindo os sobrinhos-netos novos, todos são ‘apaixonados’ por uma peixada como manda a culinária cuiabana.

De volta à famigerada lei, ontem, 31 de janeiro, venceu o prazo que o STF concedeu ao estado para ‘ajustar’ a legislação. O Supremo, na verdade, em audiência que promoveu sobre o assunto, deu uma chance ao governo para corrigir uma medida tão drástica. Desse modo, houve o recuo e, segundo Mauro Mendes, serão feitas modificações “para contemplar os interesses dos pescadores”, e, ao mesmo tempo, “preservar algumas espécies importantes para o desenvolvimento do turismo de pesca”.

Assim, o executivo mato-grossense deve propor agora a proibição para apenas 14 espécies de peixes e não para todas como estabelece a norma legal em vigor. São elas: barbado, bicuda, cachara, carapari, dourada, dourado, jaú, matrinxã, pacu, pintado, piraíba, pirara, pirarucu e surubin. As demais espécies, estimadas em cerca de 100, poderiam ser pescadas, transportadas e comercializadas, dentro das cotas permitidas pela legislação.

Por enquanto, o bagre, preferido do meu pai, a piraputanga, paixão da filha Bianca e da sobrinha Mara Yane, e a pacu peva, que meu amigo José Antônio prepara com maestria, estão salvos. Mas o pacu, que eu adoro, e o pintado, que meu marido José prefere, estão no radar da interdição. E não venha dizer para quem é cuiabano de ‘tchapa e cruz’ que peixe de tanque é igual ao do rio porque não é.

A lição disso tudo é, tristemente, reconhecer (e lamentar) que os peixes dos nossos rios estão diminuindo. Porém, deve-se realçar que, no caso da pesca artesanal, não se deve jamais aceitar a imposição de medidas sem a demonstração de evidências científicas sobre os estoques pesqueiros do estado.

Fico por aqui na expectativa do desenrolar do imbróglio, lembrando que hoje, 1º de fevereiro, é o fim da piracema nos rios mato-grossenses.

SÔNIA ZARAMELLA

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