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terça-feira, maio 21, 2024
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Prainha: retrato de uma Cuiabá bucólica cortada por um rio de águas transparentes

O vai e vem de veículos e pessoas em plena avenida Tenente Coronel Duarte esconde uma artéria que marca a história de formação de uma cidade


Por Vanessa Moreno

O grande fluxo de veículos e pessoas que transitam todos os dias pela avenida Tenente Coronel Duarte, mais conhecida como Prainha, faz com que parte da história de Cuiabá fique adormecida. Isso porque uma grande estrutura de concreto e asfalto esconde o que sobrou de um rio que corria a céu aberto e que tinha todas suas potencialidades naturais exploradas pela população até meados do século 19.

“Há relatos de que o canal da Prainha foi usado para pesca, lavar roupas, tomar banho e até mesmo para o abastecimento de água potável para a vila, pois se tratava de um córrego de águas limpas”, conta o historiador Suelme Evangelista Fernandes.

A história conta ainda que no local havia grande exploração de ouro, pois tratava-se de uma região extremamente abundante. “Quando Miguel Sutil chegou, que ele viu as margens do riacho Prainha, que é o Ikuiêbo, ele ficou encantado com a quantidade de ouro de aluvião que tinha em terra e começou a garimpar”, relata Suelme.

O historiador revela que as margens do Córrego da Prainha foi o primeiro garimpo de Cuiabá e que Ikuiêbo era o nome dado pelo povo indígena bororo, que significa córrego das estrelas”, segundo a Enciclopédia Bororo de 1962. O nome foi escolhido, possivelmente, pela quantidade de ouro encontrada ali.

O Córrego da Prainha, embora esteja com sua maior parte canalizada, ainda representa um problema urbano de Cuiabá, por conta do abandono do Poder Público e da poluição causada pela população (Foto: Alair Ribeiro/Mídia News)

O Córrego da Prainha nasce nas imediações do Terminal Rodoviário Engenheiro Cássio Veiga de Sá. Ainda é possível vê-lo aflorado atrás do Supermercado Comper, da Miguel Sutil. Na mesma avenida ele passa canalizado, aflora novamente no bairro Araés e desemboca na avenida Rubens de Mendonça, onde é novamente canalizado e segue até desaguar no Rio Cuiabá. O seja, cerca de 70 ou 80% do córrego está canalizado.

No final do século 18 e início do século 19, a Prainha era usada como uma via de acesso do Rio Cuiabá. Esse acesso era feito por pequenas embarcações, como as canoas de cocho, de tradição indígenas, que chegavam até à Praça Ipiranga. “Teve uma pequena incursão de pescaria, há relatos muito antigos de exploração de peixe. Até ali no começo do século vinte ainda era possível pescar por ali, mas não era peixe de grande porte, eram peixes pequenos”, lembra Suelme Fernandes.

Com o passar do tempo, o Córrego da Prainha não suportou o processo intenso e acelerado de urbanização da cidade e acabou sendo canalizado e escondido por uma estrutura de concreto. Poluição, esgoto e muito lixo determinaram a sentença de morte daquele recurso natural, que antes era visto como uma artéria central no desenvolvimento da capital.

O Córrego da Prainha começou a receber muito lixo e esgoto a partir do século 19 e passou a representar um problema para a cidade (Foto: reprodução)

“Um córrego que nos séculos 18/19 era muito usado para navegação e com o desenvolvimento urbano de Cuiabá, a partir do século 19, começou a ganhar muito lixo e esgoto”, ressalta o historiador.

O fechamento ocorreu entre 1975 e 1979, na gestão do então prefeito Rodrigues Palma. “As pessoas jogavam muito lixo dentro do córrego e quando chovia aquilo virava uma inundação completa na prainha de fora a fora e, além disso, o córrego era mau cheiroso e aquilo incomodava muito essa região tão central de Cuiabá”, diz Suelme.

Para os tempos atuais, há dois reflexos positivos da canalização: o primeiro é que hoje seria ambientalmente impossível fazer o fechamento do córrego poluído, uma vez que a legislação já não permite, pois trata-se de uma Área de Preservação Permanente (APP); o segundo é que o fluxo de carros e de pessoas aumentou ao longo do tempo no entorno da Prainha.

O reflexo negativo é que há muita história e memórias escondidas embaixo da grande avenida. “O fechamento não foi um grande ganho, foi a medida que dava para fazer. O prefeito Rodrigues Palma foi aclamado na época, porque para aquele momento foi uma solução bastante inteligente”, ressalta Suelme, mas lamenta “Pensar que esse rio continua embaixo de estruturas de concreto é uma tristeza enorme. É óbvio que do ponto de vista atual, ambiental, essas soluções são muito agressivas e danosas ao meio ambiente”.

“A Prainha tem um valor afetivo e sentimental muito grande pra memória dos cuiabanos, pela história de gente que já brincou ali, de gente que passava por ele quando ele era aberto, de gente que já chegou a achar pepita de ouro ali”, diz o historiador Suelme Fernandes. (Foto: Ednilson Aguiar)

O Córrego da Prainha teve sua área de escoamento reduzida e acabou virando um túnel de esgoto. De acordo com Suelme, é ali que desagua todas as galerias fluviais do Centro Histórico. “Ela se tornou no final das contas um grande fluxo de captação de águas fluviais de Cuiabá”, explica.

“Hoje ela tem uma grande finalidade hidráulica pra Cuiabá, mas é tanta água que vai pra lá, que na época das chuvas é muito comum ainda hoje a Prainha se alagar”, completa o historiador.

Nos anos que marcam o fechamento da Prainha, o córrego já não tinha nenhuma utilização. Era visto apenas como um esgoto que na época das chuvas aparecia com muita força e no tempo de seca ele diminuía. “É uma tristeza ver que a cidade desenvolveu e passados 300 anos a gente não conseguiu devolver para cidade um córrego que está tão ligado à sua história”, lamenta Suelme.

De recurso natural rico a um grande problema ambiental. Pouco se fala sobre a história do Córrego da Prainha para as gerações atuais. “A cidade foi crescendo, o progresso foi vindo e a gente começou a ter vergonha do córrego a ponto de ter feito uma estrutura de concreto e ter escondido ele de baixo da terra mesmo sabendo que ele representa tanto para alma da cidade e para a nossa identidade local”, destaca o historiador Suelme.

Ao ser questionado sobre a possibilidade de revitalização do Córrego da Prainha, o historiador afirma que, embora ache uma ideia interessante, acredita ser totalmente inviável. “Tenho certeza que é absolutamente impossível pensar em revitalização do Córrego da Prainha um dia, mas seria muito interessante se a gente conseguisse, de repente, resgatar esse córrego e não só ele, mas todas as suas matas ciliares”.

A possível revitalização envolveria a destruição quase completa de grandes avenidas de Cuiabá, como a Historiador Rubens de Mendonça, Miguel Sutil e a própria Tenente Coronel Duarte, que escondem a Prainha. Além disso, casas e comércios precisariam se desapropriados, já que se trata de um percurso extenso, com aproximadamente 8 quilômetros. “É praticamente inviável, vai ficar apenas a saudade de uma época que muita gente não viu, mas de uma Cuiabá bucólica que era cortada por um rio que tinha águas transparentes, que podiam ser pescadas, navegadas, podia lavar roupa e inclusive utilizar suas águas para abastecimento. Isso vai ficar apenas na memória”, conclui Suleme.

Temporada Aberta da Prainha

Todo o Projeto Temporada Aberta da Prainha está descrito neste jornal publicado em dezembro de 2021 por Doriane Azevedo, em parceria com Ana Frigeri e Douglas Peron (Foto: reprodução)

Na contramão das circunstâncias, a arquiteta urbanista e professora Doriane Azevedo, do Grupo de Pesquisa e Extensão – Estudos de Planejamento Urbano e Regional (Épura), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), acredita que a restauração do Córrego da Prainha é possível desde que haja vontade das autoridades competentes. “Tecnicamente falando, reabrir e restaurar o córrego é possível. Politicamente, exige compromisso e vontade, afirma.

Desde 2010, Doriane está envolvida no desenvolvimento de trabalhos e projetos que proporcionem a revitalização e ocupação do Centro Histórico de Cuiabá. Em 2021, ela coordenou um Projeto de Extensão na UFMT, intitulado “Temporada Aberta da Prainha”, que discute outras formas de utilização do centro, sobretudo da Prainha, que, como descreve o projeto, atualmente é vista apenas como “rota de diversas linhas de transporte público, destino e partida de milhares de pessoas, “mar” de carros em horários de pico”.

Dentre as ações pensadas na “Temporada Aberta da Prainha”, está um conjunto de atividades que inclui cinemas de rua, feiras, circuito de museus, uso de espaços altos para contemplação da cidade, circuito de bares, transporte sustentável, melhor utilização dos calçadões, prioridade de acesso aos pedestres e ciclistas, o uso da prainha para programações ao ar livre, atividades contemplativas e lúdicas para crianças, atividades físicas e intervenções artísticas, entre outras.

Todo o projeto foi registrado, em dezembro de 2021, no Jornal da Temporada, uma publicação organizada por Doriane, em parceria com Ana Frigeri e Douglas Peron, seus alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo.

Para que toda essa ideia seja colocada em prática, Doriane diz “falta recurso, porque disposição nossa tem. O Plano de Intervenções Temporárias está idealizado, só aguardando ser testado”.

Visto pela professora como um importante elemento de estruturação da paisagem que deveria ser resgatado, o Córrego da Prainha nunca foi um problema urbano de Cuiabá. “Como pesquisadora, tenho a premissa que devemos problematizar corretamente as questões para enfrentarmos”, ressalta Doriane e deixa o questionamento “quem incomodava era a Prainha ou o que prejudicou a Prainha foi o lançamento in natura do esgoto produzido por nós? ”

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