24 C
Cuiabá
quinta-feira, maio 9, 2024
spot_img

Cuiabá 305 anos: Dona Ramira, uma costureira de mão cheia

Cuiabana raiz, ela é um símbolo de força e resistência feminina; uma artista da costura, agulha e linha são seus pincéis, os tecidos são a sua tela

Vanessa Alves

Em meio a uma peça de roupa e outra, ela passa a maior parte de seu dia costurando, uma profissão que aprendeu há mais de 40 anos. Ramira Maria dos Santos, 76 anos, é o retrato da cuiabana raiz. Costureira de mão cheia, agulha e linha são seus pincéis, tecidos são a sua tela.

Viúva há três meses, de um casamento que durou 56 anos, carrega com orgulho a criação de seus três filhos e a alegria de seis netos. Ramira nasceu na zona rural, em Rio Manso, é a mais velha de seis irmãos. Veio para cidade aos 17 anos para estudar na escola das irmãs, hoje o Centro Educacional Maria Auxiliadora.

Há quase seis décadas, o bairro Santa Helena, outrora conhecido como “Bairro do Bufante”, é o seu lar. A evolução das ruas, das casas e da cidade testemunham sua história, guardam o eco de seus passos firmes e de sua força feminina.

Seu sorriso e olhos brilhantes, adornados por rugas, contam sua história de vida e conquistas. É a porta de entrada para sua alma acolhedora. A casa, simples e aconchegante, é um refúgio de afeto, onde o cheiro de café fresco se mistura ao aroma de retalhos e linhas coloridas.

Visualização da imagem
Foto: Tchélo Figueiredo

‘Boiadeira do pai’

A vida de dona Ramira não foi fácil. Vinda de uma família rígida, em uma época em que só podiam estudar se fosse homem, cresceu a maior parte da vida sem saber ler e escrever; apenas o trabalho na roça e os afazeres de casa que era sua obrigação.

Por ser a filha mais velha, ajudava o pai na lida com o gado, “tocando” e vendendo para comerciantes locais. Ela conta que na região era conhecida como a “boiadeira do pai”.

“Me lembro de uma vez que eu, mamãe e papai e meu irmão ficamos oito dias andando pelas estradas vendendo gado. Saímos lá do sítio, até descarregar no Mercado Municipal aqui em Cuiabá. Apenas com couro de boi para servir de proteção contra chuva e os cavalos que carregava nossa carga. A gente chegava aqui, vendia os bois, fazia compras: comida, roupas novas, sapatos, e voltava andando de novo para casa. Mesmo cansados, ficávamos felizes com as roupas novas, já fazíamos planos para as festas que tinha na época.”, relembra.

Visualização da imagem
Foto: Tchélo Figueiredo

Essa foi sua vida, trabalhou duro na roça, “campeando” gado e fazendo comida para peão de fazenda, tecendo rede, bordado, entre outros afazeres que as meninas daquela época tinham que saber. Até sua vinda para Cuiabá. Dona Ramira conta que quando deixou a casa dos pais, veio na esperança de estudar, que era um sonho que carregava desde criança, mas ao chegar aqui se deparou com outra realidade.

Na escola das irmãs o que ensinava era ter disciplina e os trabalhos domésticos, e não o estudo que ela queria. As meninas que já estavam lá, estavam bem à sua frente, então, pouco mais de um ano, ao sair de férias, resolveu não voltar.

“Eu queria aprender as letras, escrever meu nome, aprender matemática, mas o que ensinavam lá era outra coisa. Aprendi muito estando no colégio das irmãs, aprendi a lavar roupa direito, aprendi a costurar, e a ter disciplina, mas não era o que eu queria”, recorda.

Pouco depois de sair do colégio das irmãs, ainda morando com a mãe em Cuiabá, começou a trabalhar como doméstica em casa de famílias. Ela conta que era muito cansativo, tinha que lavar as roupas à mão e em uma bacia, pois na maioria das casas não havia pias e nem máquinas de lavar roupas na época.

“Era muito cansativo, chegava em casa muito cansada. Tinha que lavar roupas na mão, em bacias no chão, era muito cansativo”, enfatiza.

Pouco depois, aos 20 anos, se casou e se viu em outro embate. Dessa vez, o marido que era contra ela estudar. Logo vieram os filhos, então decidiu se dedicar na criação dos filhos e os cuidados casa. Mas o sonho ainda se perpetuava dentro dela.

Em busca do sonho

As dificuldades começaram com o avanço dos estudos nas crianças. Na medida que eles avançavam, era difícil ela ensinar, pois mal sabia escrever seu nome. Teve inclusive que pagar um professor particular para ensiná-los fora da escola.

Visualização da imagem

“Eu não sabia nada, e quanto mais o tempo ia passando, mas eu precisava. Foi aí que eu enfrentei meu marido. Falei para ele: “Óia, se você quiser largar de mim, larga, mas eu vou estudar”. E eu fui. Porque se ficasse obedecendo, ele como eu ficaria? Agora ele morria, eu tinha que ficar dependendo dos outros, não é mesmo?”, explicou.

Mas dona Ramira só foi concluir os estudos depois que os filhos já estavam se formando na faculdade. Então ela decidiu ir atrás de seu sonho. Aprender a ler e escrever era seu novo objetivo. Conseguiu se formar no ensino médio, fez cursos de costura para aperfeiçoar e conseguiu entender sobre as letras e a matemática. Pretendia cursar Direito, mas por causa de sua idade não foi adiante.

Apesar das dificuldades, de toda a sua infância e juventude, ela se sente feliz, realizada. Ela diz que as dificuldades são para aprender e evoluir.

Dona Ramira conta também que dedicou a vida para cuidar do marido, que era caminhoneiro. Assim que aprendeu a lidar com os números, ajudou ele na comercialização das mercadorias que transportava, comprando e revendendo.

Há 20 anos atrás, o marido de Dona Ramira, Benedito [mais conhecido na região como Dito, descobriu o Alzheimer. A partir daí, ela passou a se dedicar a cuidar 100% do marido. Ele faleceu em novembro de 2023.

A Cuiabá que eu quero

Ela relembra quando Cuiabá era antigamente, no seu bairro podia andar tarde da noite sem medo. Ramira lembra de quando ia ao cinema, o antigo Cine Bandeirantes, na matinê com as colegas de bairro, e mesmo sem iluminação nas ruas não tinha medo de voltar para casa.

Visualização da imagem

“A gente saia embolado, para ir ao cinema lá no centro, ia e voltava a pé, porque o ônibus demorava muito. Havia uma kombi que carregava só oito pessoas, então não cabia todo mundo. Gostava de ir muito nesse cinema, saia escondido de mamãe, quando ela via, já estava voltando. Era matinê, começa umas 15 horas. E quando meus filhos eram pequenos, levava eles também, ficavam todos alegres”, recorda, com saudades.

Dona Ramira diz que a cidade cresceu e modernizou, melhorou, porém ainda deve mudar muito. Ela cita o problema em seu bairro, que não possui mercado próximo, e as mercearias que existiam acabaram fechando por falta de segurança. Ela cita os assaltos constantes no bairro, tem que permanecer com o portão sempre trancado no cadeado.

“Quando vim morar aqui era tudo mato e as casas não tinha muro, as pessoas sentavam na frente de casa para prosear e as crianças brincavam na rua. Apesar das ruas não terem iluminação, a gente não tinha medo. Podia sair e chegar tarde da noite que não acontecia nada”, explicou.

Então, para Dona Ramira, a Cuiabá que ela quer é mais segurança e comodidade para as pessoas.

Dona Ramira é a prova viva de que nunca é tarde para aprender e crescer. Sua história, escrita com linhas de força e resiliência é um exemplo para todos que a cercam. Uma mulher que, com o coração transbordando de amor e sabedoria, inspira e tece um futuro de esperança para as novas gerações.

Em cada ponto costurado, em cada palavra escrita, Dona Ramira deixa um legado de amor e superação que ecoam pelas ruas do bairro Santa Helena, contemplando a memória da cuiabana raiz que jamais desistiu de seus sonhos.

Clique aqui e entre no grupo RDM no Whatsapp

Latest Posts

ÚLTIMAS NOTÍCIAS