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quinta-feira, maio 9, 2024
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Cuiabá 305 anos: A força de uma guerreira de 102 anos de vida bem vivida

Dona Valeriana Antônia dos Santos, 90 anos de Cuiabá, fé em São Benedito e uma história de amor não correspondida

 

João Negrão

A cerca de oito meses de completar 102 anos de uma vida muito bem vivida, a dona Valeriana Antônia dos Santos já não tem muita certeza em sua existência. Não pensa no futuro, recorda com banzo o passado e vive a maior parte do seu presente em sua cadeira de balanço cuiabana na varanda de sua casa no bairro Dom Aquino.

Nascida em Poconé, ela veio para Cuiabá aos 12 anos, analfabeta e sem nome registrado. “Eu nasci no dia 18 de novembro de 1922. Aí meu pai morreu, minha tinha dificuldades para cuidar de nós e eu vim para trabalhar e estudar. Foi o finado Moura que me registrou aqui em Cuiabá”, conta, recordando da pessoa que virou seu tutor na capital.

Buscando resquícios na memória, ela conta que a decisão de mudança para Cuiabá já alimentava a família desde “a guerra de Totó Paes”. “Eu lembro um dia que meu pai, ele estava trabalhando no sítio, aí ele falou pra minha mãe: ‘Chica, vamos esconder que a guerra de Totó Paes vem atrás de mim, vem me buscar para eu ir para a guerra. Arruma as crianças e vamos pro mato’. Aí nós fomos com ele pro mato, esconder da guerra de Totó Paes”, conta.

Totó Paes era apelido do na época presidente (hoje se denomina governador) do Estado de Mato Grosso, Antônio Paes de Barros. No rastro dos conflitos que se espalharam Brasil afora na jovem república brasileira, Totó entrou em guerra com o então senador Generoso Ponce, que decidiu retirar-lhe o poder. Depois de muitas batalhas, acabou sendo acuado e morto em seu refúgio na antiga fábrica de pólvora do Exército construída na época Guerra do Paraguai, na região do Coxipó do Ouro.

Ocorre que esse episódio teve seu desfecho final com o assassinato de Totó Paes 16 anos antes do nascimento de dona Valeriana. Mas por que a sua distante memória da tentativa do pai se esconder com a família para não ser recrutado para a guerra?

É porque a guerra entre Totó Paes e Generoso Ponce foi um momento da história de Mato Grosso que abriu uma ferida profunda no Estado e até hoje gera controvérsias. Na época em que dona Valeriana era uma criança ainda, pelo final da década de 30, pairava sobre o imaginário popular a permanência da guerra, que nunca cessava para as pessoas desprovidas de informação e ainda vivendo e revolvendo seus despojos.

Um novo começo

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A vinda da família para Cuiabá ocorreu com a morte de João Antônio Sacerdote, esposo de dona Francisca Antônia dos Santos. Com o marido morto, dona Chica teve que sair da zona rural de Poconé para conseguir emprego na capital e conseguir criar os seis filhos. “Foi o finado Moura que trouxe nós, arrumou emprego para minha mãe e registrou eu e meus irmãos”, conta.

Moura, que ela não recorda o sobrenome, arrumou para dona Chica emprego de cozinheira, enquanto a adolescente Valeriana e seus irmãos Didita, Arminda, Sili, João e Maria foram para escola. Os mais velhos, como ela, também trabalhavam para ajudar na despesa doméstica. Foi babá, empregada e ajudante de cozinha.

“Quando chegamos em Cuiabá o Moura arrumou pra gente morar em uma casinha pequenina no quartel”, conta ela, se referido à sede do 1º Batalhão de Polícia Militar, ali próximo, na avenida 15 de Novembro, na divisa do bairro Dom Aquino com o bairro do Porto.

Aos seus 22 anos teve o primeiro filho, que não foi assumido pelo namorado que desapareceu da vida dela quando ficou sabendo da gravidez. Nesta época ela trabalhava como empregada doméstica. “Eu fiquei empregada lá com a dona Ritinha do Justiniano. Aí depois, ela arrumou para eu ficar trabalhando lá no Sanatório, onde fique por 30 anos. E lá, eu aposentei”, recorda.

O Sanatório ao qual dona Valeriana se refere era o antigo Sanatório Federal, que mais tarde se tornou Hospital Universitário Júlio Muller. Ali ela trabalho como cozinheira. Enquanto isso já estava desde muito antes nas festas de São Benedito e se tornou uma das mais assíduas e atuantes festeiras do Dom Aquino.

Solteira pela vida inteira

Visualização da imagemA vida de mãe solteira, cuidando do filho, quase foi interrompida com o aparecimento de um certo João Vieira dos Santos. Um errante que entrou na vida dela sem pedir licença. Ele chegou sem muita conversa na casa de número 126 da rua Doutor Fernando Ferrari, no bairro Dom Aquino e pediu a dona Chica para namorar com Valeriana, então com 25 anos.

Namoro aceito e consentido, Valeriana ficou aguardando o prometido noivado e posterior casamento que nunca veio. Vieram, contudo, outros cinco filhos. A cada gravidez dela, o danado do João prometia casamento, mas nunca cumpria. Até que ela desistiu completamente quando descobriu que o “namorido” era casado, “de papel com tudo, com outra mulher, tinha outra família com filhos e tudo”.

Cega pelo impetuoso amor, ela nunca desconfiava que seu namorado só aparecia para lhe fazer filhos e nunca desejava a convivência cotidiana com ela e sua prole. As desculpas eram sempre que estava trabalhando. E ela foi aguentando aquela vida paciente, se apegando em suas rezas para Santo Antônio e São Benedito.

“E assim eu fiquei sempre solteira, criei meus filhos praticamente sozinha. O João foi o grande amor da minha vida e depois que ele me deixou de vez, quando a nossa caçula tinha 13 anos, eu nunca mais quis saber de homem. Não quis namorar e muito menos casar”, conta, resignada.

Uma espera em vão

João Vieira dos Santos foi embora e deixou os filhos órfãos de um pai vivo, distante e impiedoso. A os depois morreu praticamente abandonado por todos à sua volta e parte da família pela qual optou. Alguns dos filhos que teve com Valeriana só conseguiram vê-lo quando já era tarde e outros sequer nutriam consciência de sua verdadeira existência como ser humano.

Virgílio é o filho quem cuida hoje de dona Valeriana Antônia. Ele abandonou o emprego de três décadas na Empaer para ficar 24 horas por dia com ela. Ele diz não sentir mágoa do pai, muito embora tivesse sido rejeitado todas as vezes que o procurou. “Nunca vi seu rosto vivo. Ele nunca quis se encontrar comigo. Tentei várias vezes”, recorda.

Depois de muitas tentativas, Virgílio conseguiu encontrá-lo uma única e última vez. Foi na rua Manoel Ferreira de Mendonça, 364, no bairro Bandeirantes, atrás do antigo Pronto-Socorro Municipal. É ali o endereço da Capela Jardins, onde João Vieira dos Santos estava sendo velado numa manhã fria do mês de junho.

“Hoje, dia 02/06/2020, às 11h28, saindo do serviço para casa, recebi uma ligação de minha prima Daize. Perguntei se era notícia boa e logo em seguida ela informou que meu pai tinha falecido esta manhã. Será velado no dia 03/06/2020, das 7 às 10 horas da manhã. Senhor João Vieira dos Santos, descanse em paz: 06/05/1934-O2/06/2020”, registrou Virgílio em seu diário, onde relata diversos episódios de sua família e planeja transformá-lo em livro.

Prossegue ele no diário: “De consolo fiquei sabendo que eu poderia visitá-lo, mas foi tarde demais, ele teve um infarto. Só tive a oportunidade de vê-lo na Capela Jardins/Aliris, dentro do caixão”.

Com a morte de João Vieira, dona Valeriana sentiu o alívio daqueles que sepultam uma parte da vida que é para nunca mais existir mesmo. Ela já não tinha o mesmo amor de antes. O que era fogo se apagou e nem cinzas sobraram. Mas sentiu a perda e chorou porque os filhos não conseguiram obter a convivência desejada e que estava tudo agora definitivamente enterrado.

Marcas do que se foi

Visualização da imagemCom a memória ainda forte e sua voz fraquinha, dona Valeriana recorda a Cuiabá daqueles meados da década de 30, quando ela chegou na cidade. “O início da vida aqui não foi fácil. Mamãe trabalhando de cozinheira a gente fazia tudo em casa e ainda trabalhava fora. Eu lavava roupas com ela e aprendi a cozinhar como ela. Cozinheira foi a minha profissão e a dela”, conta.

Suas reminiscências vão longe. Vagamente revolveu nas lembranças as festas de santos, em especial as de São Benedito e de Santo Antônio, que ela organizava junto com dona Chica. O santo casamenteiro e o santo negro são seus esteios de fé até hoje.

“Eu e mamãe fazíamos a festa de Santo Antônio”, recorda. “Depois que eu me aposentei, eu fiquei doente e não podia mais andar como antes, seguir as festas. Fiquei assim, com a cadeira assim, não podia mais andar como antes”, enfatiza.

Mesmo assim, sem poder sair de casa com a frequência desejada, dona Valeriana não parou de trabalhar. As mãos mágicas de cozinheira a levaram a fabricar salgados. Foi salgadeira até poucos anos antes.

E se Maomé não ia à montanha, a montanha vinha a Maomé. Ou seja, se ela não conseguia sair para suas rezas de santo, as rezas iam para a casa dela. “Passei a fazer rezas aqui, a receber minhas amigas, meus amigos, a parentada toda. Mas agora, por esses dias, que estou sem poder fazer nada. Tudo cansou dentro de mim”, descreve.

“Hoje eu sinto falta de minha e quero ser enterrada no mesmo cemitério dela, no chão, como ela. Só vivo com o meu salário de aposentada e com a ajuda dos filhos. E sou grata por meu filho cuidar de mim”, diz apontado para Virgílio.

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Qual a Cuiabá que a senhora quer para as novas gerações, dona Valeriana? “Que seja melhor do que foi para mim”, responde.

A senhora deseja viver mais quantos anos?

“Eu quero que Deus me leve logo. Pois eu já vivi o bastante”, responde dona Valeriana, com sua voz baixinho, com brilho nos olhos por detrás de seus óculos estilosos e apoiada na sua bengala estilo Carl Fredricksen, o simpático e paradoxal rabugento velhinho do filme Up – Altas Aventuras.

 

 

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