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terça-feira, abril 30, 2024
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“”Descobri que realmente os orixás existem. Essa espiritualidade abriu portas para mim”, explica o ator André D’Lucca

André D’Lucca fala sobre a sua luta contra o racismo, sua reconexão cultural e a peça “Sankofa”, que fala de letramento racial 

 

 

Everaldo Galdino

“Descobri que realmente os orixás existem. Comecei a conhecer todos eles, um de cada vez. Essa espiritualidade abriu portas para mim.” Com essas palavras, o ator André D’Lucca, de 46 anos, iniciou a entrevista ao grupo RDM, no Cine Teatro Cuiabá, um dos palcos onde apresentou seu novo trabalho: o monólogo “Sankofa”.

A peça teatral resgata a ancestralidade e compartilha conhecimento sobre letramento racial. O espetáculo, dirigido por Mawusi Tulani e com figurino de Jean Guaré, fotografia de Fábio Motta, arte digital de Fernanda Fernandes e iluminação de Loro de Hiald, além de assessoria de imprensa da Livre Comunicação Coletiva, foi apresentado não só em Cuiabá, mas também nas cidades de Alta Floresta e Cáceres. Além disso, o ator falou sobre racismo, relatou o drama vivido com a separação da filha, perseguição política e críticas à personagem Almerinda, além de abordar um novo projeto em São Paulo (SP).

Confira trechos da entrevista:

RDMOnline: Quais experiências como pessoa e ator negro o remetem a essa ancestralidade?

 André D’Lucca: Então, eu tinha uma visão da ancestralidade que se resumia aos meus avós e meu pai, aos parentes que conhecia. Meu avô materno, chamado Agenor, filho de uma mulher escravizada, era garimpeiro e uma figura paterna para mim na infância. Ele me introduziu a essa espiritualidade, pedindo-me para acender uma vela todas as segundas-feiras para as almas em agradecimento aos que vieram antes de nós. Outra figura importante é minha avó materna, Maria Carolina, conhecida como “vó bugrinha”, uma indígena que foi merendeira escolar. Não conheci meus avós paternos. Na minha busca pelo letramento racial, percebi uma ancestralidade muito mais ampla e uma espiritualidade que ignorei por medo. Cresci acreditando que Exu era o demônio e tinha medo dele e de tudo relacionado à matriz africana. Passei por diversas religiões, inclusive sendo pastor evangélico e seminarista da igreja messiânica, antes de entender que meu lugar não era ali. Ao descobrir essa ancestralidade como um todo, compreendi a realeza africana que carrego e a potência que isso representa. Nas escolas, não aprendemos sobre isso; somos ensinados que descendemos de escravizados. É como se a história do povo negro começasse apenas na página 999 de um livro de mil páginas. Eu consegui acessar as páginas anteriores e descobrir toda essa potência. Somos o berço da humanidade. Como os europeus, que chegaram depois, construíram tudo? Há algo errado nisso. Acessei essa ancestralidade, e esse é o caminho de Sankofa.

RDMOnline: O que é Sankofa?

André D’Lucca: Sankofa é olhar para o passado e buscar o que realmente importa. Se não fizermos esse movimento, nunca construiremos um futuro decente.

RDMOnline: Quais são as experiências com o racismo ainda prevalentes no Brasil? Já sofreu discriminação racial? Pode nos contar?

André D’Lucca: O racismo me atingiu quando tomei consciência dele aos 5 anos de idade. Éramos 12 pessoas em casa, sendo que minha mãe adotou 5 filhos e teve outros 4. Meu pai tinha mais 3 filhos de um casamento anterior. Estávamos sempre rodeados de pessoas; éramos muito pobres, mas minha mãe era professora e foi a primeira mulher negra a trabalhar como secretária de Educação em Mato Grosso. O telefone em casa não parava de tocar, e eu, aos 5 anos, não entendia por que. Quando atendia, ouvia: “diga à sua mãe que o lugar de preta é na cozinha, lavando roupa, não dirigindo uma secretaria”. Não compreendia o que estava acontecendo. Mas aos 5 anos, em um açougue em Várzea Grande, fui agarrado por um guarda que não nos conhecia. Ele me acusava de roubar carne, chamando-me de “negrinho”. Essa cena nunca saiu da minha mente. Naquela idade, a mãe explicou que era por causa da cor da minha pele, que eu seria seguido a vida toda. Em casa, desinfetei minha pele com água sanitária, querendo ser branco. Durante parte da infância, recusei ser negro. Desde cedo, lidei com essas situações. O racismo é presente, mas só quem tem a pele retinta sabe; escuto todos os dias nas minhas mídias sociais, pessoas brancas dizendo: é mimimi, não existe racismo no Brasil. Como um homem pode dizer a uma mulher que não existe machismo? Eu, enquanto homem, não posso dizer a uma mulher: isso é mimimi, não existe machismo. Isso me atravessa, eu não tenho experiência. Mas as pessoas brancas se sentem legitimadas para falar que o Brasil é um país que não existe racismo.

RDMOnline: Como você transformou essas experiências dolorosas em força para crescer como pessoa e desenvolver esse lado artístico?

André D’Lucca: Eu mudei para São Paulo há quase dois anos. Lá, eu li meu primeiro livro de letramento racial. Eu li a vida inteira, mas nunca nada focado em letramento racial. Sou formado em Direito e quando eu li Frantz Fanon, o primeiro livro Peles Negras, Máscaras Brancas, fiquei muito chocado com aquilo, chorava muito e pensei: “os jovens não precisam passar pelo que eu passei. Eu vou compartilhar esse conhecimento!” Porque as pessoas estão tão ocupadas em sobreviver a essa nova escravidão que a gente vive de pagar aluguel, telefone, água, luz, internet, e você não consegue olhar no retrovisor e entender o caminho que nos trouxe até aqui. O custo de vida é a nova escravização do povo negro. E então eu resolvi pegar toda a minha dor, pegar o novo conhecimento e compartilhar. Eu comecei através do meu Instagram, no dia 1º de janeiro eu tinha 52 mil seguidores, o que já é um bom número. Hoje, em menos de três meses, estou com 204 mil seguidores. Porque esse é um assunto que as pessoas desconhecem. É caro ter o letramento racial. Você tem que comprar livros, buscar informações, assistir documentários e diversas palestras. Eu compro aulas de historiadores e antropólogos. Então, eu invisto para aprender. Assim, compartilho o conhecimento com todos.

RDMOnline: Como ser artista em um estado periférico como Mato Grosso, em que a cultura é pouco desenvolvida e valorizada?

André D’Lucca: Eu sobrevivi aqui por décadas da bilheteria, do incentivo do público. Eu não tinha acesso a verbas públicas. Eu não tinha, porque o meu assunto era política. Então, foram praticamente 33 anos dedicados à cultura sem ter um único projeto aprovado. E a partir do momento que eu comecei a colocar os orixás na jogada, principalmente Exu… Uma vez, eu estava em casa conversando com uma amiga daqui de Mato Grosso. Ela é de matriz africana, e aí eu falei, eu não sei o que há de errado no meu trabalho, eu acho que meu trabalho não presta, porque eu não consigo aprovar um projeto. E ela falou: “como está a tua relação com o Exu?” Eu falei: “Deus que me livre, por que eu vou falar com o Exu?” Ela falou: “mas o Exu que abre os caminhos, ele que é o mensageiro, tem algum erro na tua comunicação com o espiritual”. Eu falei: “pelo amor de Deus, não mexe com isso, não!” Aí ela falou: “vai numa segunda-feira pôr um padê pra Exu.” E eu conheci a gíria de padê com cocaína. Falei: “além de ser o diabo, ainda cheira cocaína. Meu Deus, me defenda!” E aí eu fiquei duas semanas estudando sobre o Exu, pesquisando, tomei coragem, fui numa encruzilhada, coloquei o padê (cerimônia expiatória do candomblé e de religiões de origem ou influência afro-brasileira, na qual se oferecem a Exu) e a cachaça (bebida) pro Exu. Conversei com ele e no dia seguinte aprovaram o meu primeiro projeto. Aí eu falei: “Exu, eu acredito em você, mas isso foi coincidência.” E naquele mês eu tive quatro projetos aprovados. E aí eu descobri que realmente os orixás existem. Comecei a conhecer a todos eles, foi chegando de cada vez. E essa espiritualidade abriu as portas pra mim. Foi um momento muito bom da minha carreira, da minha vida.

RDMOnline: Por sofrer represália como ator crítico na sociedade, principalmente com políticos. Como está essa situação?

André D’Lucca: Eu dei um tempo na questão política, porque eu sofri muito. Eu cheguei no fundo do poço por causa dessa questão. Eu estava numa depressão porque minha filha foi retirada de mim. Porque eu e minha ex-mulher nos separamos. Nessa relação, tivemos uma filha. A última vez que a vi, Luiza estava com dois anos e meio. Depois que separamos, a minha ex-esposa conheceu outro homem, engravidou dele e desapareceu da cidade. Não tive mais contato com minha filha e ela tem 17 anos. Não tenho nenhuma foto dela pra mostrar e é como se ela estivesse morta, mas ela está viva em algum lugar. Então, eu entrei numa depressão profunda e já no processo depressivo, recebia 10 a 15 mensagens por dia aqui em Cuiabá, perguntando por que eu não me matava, que eu era um lixo, que eu sou uma vergonha pra Cuiabá, que eu sou uma vergonha pra Mato Grosso, que a minha personagem é escrota. Chegou um ponto que aquilo foi tornando tanta verdade na minha cabeça, que eu me achava realmente um lixo, eu achava que eu era um erro da natureza. Hoje, eu acho que sou um acerto. Me considero a pedra retirada por Exu, dessa estrutura racista.

RDMOnline: Como você vê o sistema de cotas no Brasil? Como o acesso à educação para as pessoas negras e as empresas que não têm políticas para criar cargos de gerência para esse público?

“O racismo é presente, mas somente quem tem a pele retinta sabe”, explica o ator (Foto: Tchélo Figueiredo)

André D’Lucca: Eu sonho em abrir minha escola em São Paulo e lá em São Paulo minha escola vai ser uma escola de cota racial. Então 5% das vagas da minha escola serão destinadas a pessoas brancas, 95% para pessoas não brancas, negros, indígenas. A cota é uma reparação histórica. Os brancos não aceitam, eles falam de meritocracia, mas a meritocracia é um conceito criado por branco pra manter o privilégio deles. Porque é impossível uma pessoa que mora no Alphaville, tem acesso aos melhores equipamentos, a melhor internet, a melhor escola, o melhor ensino, viaja o mundo, tem aula de inglês, francês, espanhol, competir com uma pessoa que mora, por exemplo, num bairro periférico, que mal tem comida, condições de comer, ir pra escola, não consegue estudar. Então, não há meritocracia. Não tem como competir de igual para igual. As cotas é uma reparação histórica. Esse país foi um país que demorou a acabar com a escravização. A escravização acabou há pouco tempo.

A gente tem um ensino muito centrado, mentiroso. A gente aprende mentiras na escola e o meu objetivo é trazer a luz, trazer a verdade à tona. Por exemplo, a gente aprende que a Idade Média aconteceu no mundo inteiro, pois é uma mentira. Aconteceu na Europa e foram os negros, os mouros (habitantes do nordeste da África que são muçulmanos que falam árabe ou ainda, aos muçulmanos de origem espanhola, judaica ou truca), que tiraram eles daquele obscurantismo, daquele momento de trevas, onde eles criaram a própria doença deles, que era a peste branca. Eles criaram. E depois eles pegam todo o conhecimento nosso, invadem o nosso continente, invadem o mundo todo. E a gente aprende essa mentira como se fosse uma verdade.

RDM Online: Cuiabá completará 305 anos, no dia 8 de abril. O que você espera do futuro da cidade?
André D’Lucca:
Eu espero que o Cuiabá aprenda a votar, porque o cuiabano não sabe votar e escolhe os piores gestores possíveis para administrar a cidade e o resultado é esse, que vocês veem. Operação da Polícia Federal, é secretário preso. É gente morrendo no hospital, sem medicamento, é medicamento estragado sendo jogado no lixo. Eu espero que o cuiabano tome consciência do poder, que não venda o seu voto a troco de migalhas, não vote pensando no benefício próprio, pense na população toda, pense no futuro. Que o cuiabano aprenda a ter consciência e a escolher melhor seus gestores.

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