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sexta-feira, maio 31, 2024
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O “aleatório” racismo nosso de cada dia

Por Daniela Santos Bezerra

 

Peço aqui muitas licenças para vários segmentos da sociedade para falar de um lugar de indignação. Não falo do lugar da pessoa negra (tampouco me reconheço como branca, já que meu sobrenome e história familiar carregam a história dos povos ladinos da Península Ibérica), nem do lugar de jornalista (sou psicanalista e trabalho na saúde mental pública).Falo do lugar de mulher, que espera viver em uma sociedade menos violenta, menos desigual. Minha trajetória de filha de imigrantes nordestinos e de trabalhadora da Rede de Atenção Psicossocial no SUS não me permite aceitar a violência ao outro como sinônimo de segurança a mim mesma ou aos meus próximos.

Qual não foi meu maior choque ao buscar o histórico do deputado do Paraná Renato Freitas, imediatamente ao ver a humilhação sofrida e filmada por ele mesmo? Uma fileira de veículos de comunicação e cujos anúncios da matéria anunciavam desde um “suposto ato de racismo”, até a ironia sobre a fala do deputado. Títulos que, dependendo do veículo, saberíamos a qual tendência se inclinaria. Para quem não viu o vídeo, é fundamental ver e se lembrar que não existe esse tal “procedimento de segurança aleatório” de retirar uma pessoa de dentro do avião, após todos terem embarcado para revistar a bagagem de mão e passar detector de metais em volta do corpo.

Uma situação completamente bizarra e revoltante, já que revistas “aleatórias” ocorrem no raios-x. Aí cabem aspas, pois meu amigo prof. Dr. Paulo Alberto Vieira da Unemat, sociólogo e pós-doutor em Saúde Mental da População Negra, líder do Grafite – Grupo de Pesquisa sobre Ação Afirmativa e Temas da Educação Básica e Superior, já havia me dito que quase sempre ele mesmo é parado no aparelho de raios-x para revistas “aleatórias”. Ele sim tem o lugar de fala do marcador social da pele negra inconfundível. Mesmo assim, preferi não acreditar imediatamente nele, tamanha a minha dor toda vez que me deparo com esse nível de perversidade social. Mas, no dia 10 de maio de 2023, quarta-feira, veio à tona a certeza.

A primeira pergunta que me vem é: de que segurança estamos falando? Quem são nossos verdadeiros inimigos?

Vinte e quatro horas por dia a pessoa negra está exposta a todo tipo de violência, se for mulher e periférica está dupla ou triplamente exposta. Este caso do deputado Renato Farias não é, nem de longe, o que ocorre de pior à população negra, mas pode ser um nítido exemplo do fino limite que comprova nosso racismo estrutural. Fino porque é preciso sair da cegueira e do conforto do nosso privilégio branco para nunca mais deixar de ver o modo racializado, violento e segregatório como os negros são tratados. Fino porque não havia nenhum outro argumento para a execução do tal “procedimento de segurança” que não fosse a aparência.

Um passageiro branco com pressa é um passageiro branco com pressa, um passageiro negro com pressa é um criminoso em fuga?

Nosso país já contou com embasamento de políticas de sanitarismo, chamado de científico e que embasou o nazismo, de seguidores de Cesare Lombroso, psiquiatra italiano. Raimundo Nina Rodrigues, fundador da antropologia criminal, iniciou os estudos sobre a cultura negra sob uma perspectiva racista e nacionalista. Em seu livro Os africanos no Brasil (1890-1905),definiu características psicossociais dos seres humanos a partir de suas características físicas, concluindo que a pessoa negra era “degenerada”, bem como os miscigenados.

O higienismo vigorou como diretriz em política pública de saúde (inclusive mental) até a década de 30 e para o espanto dos trabalhadores da saúde mental, vimos essa política de recolhimento de pessoas em locais longínquos do convívio social, retornar com o aumento da população de rua. A classificação humana subsidiada pela ciência, portanto, normatiza quem são pessoas mais humanas e menos humanas. Todos os dias a instaurada “guerra às drogas” dá prerrogativas ao braço ostensivo do Estado a matar “aleatoriamente” jovens negros, assim como encarcerá-los sob a suspeita de tráfico.  Se isso não lhes causa vergonha, certamente causará às gerações vindouras, se é que haverá futuro para a humanidade que destrói o planeta a passos galopantes.

Para mim, é chocante ver que, em 2023, com tantas produções antirracistas artísticas, acadêmicas ejurídicas, o racismo permaneça tão evidente, tão aceso, tão vivo e tão violento. 330 anos de escravidão do povo negro (pessoas sequestradas, levadas como animais em navios que atravessaram o oceano, obrigadas a seguir vivendo como animais para a produção agrícola chegar onde chegou hoje, ser torturada, espancada, estuprada e todas as formas de violência possível) não deveriam ser anos elaborados, estudados para que não se repetissem jamais? Além de todo esse tenebroso e perverso histórico social, ainda perpetramos violências (sutis ou não) nos descendentes dos que foram escravizados cotidianamente?

Sabemos bem que a Lei Áurea destituiu o poder de um branco sobre um negro como seu objeto de uso, porém não houve política pública que amparasse a grande massa de recém “cidadãos brasileiros” analfabetos, sem calçado, sem pertences, sem teto, sem nada.

E o mito da “democracia racial” da década de 30/40 forjou um país mestiço que recalcou o necessário tratamento social do racismo, assim como outros temas recorrentes no Brasil.

Agora precisamos tratar é dessa falsa democracia em que vivemos.Não, amigo e amiga branca, nem todos são iguais perante a lei, uns são mais cidadãos que outros. Algumas casas são invadidas a chutes e chuvas de balas na porta, enquanto outras recebem apenas o “toc, toc, toc” com o mandado judicial devidamente assinado.

É revoltante, é ultrajante, é humilhante,  é problema nosso sim e não é aleatório.

Daniela Santos Bezerra é psicanalista, membro do Laço Analítico/Escola de Psicanálise, psicóloga, mestre e doutora em Psicanálise pela UERJ, pós-doutoranda em Psicologia Clínica pelo IPUSP, com estágio na Université Sorbonne Paris- Nord e técnica da área técnica de Saúde Mental da SES-MT.

 

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